Novamente chegam os tempos de ?à beira do abismo?, ?a um passo do precipício?. A crise deixou de ser um período de purga entre ciclos expansivos e se converteu na alma fundamental do projeto europeu, em uma forma de guerra, quase em um método de governo (?Europa se moldará nas crises?, disse um dos fundadores da União Europeia, como uma maldição bíblica). O Brexit é a última façanha desse esporte tão próprio das elites que consiste em fabricar estresse: ninguém sabe que demônios podem ter passado pela cabeça do supostamente liberal e moderadamente eurocético David Cameron quando convocou um referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia apenas para satisfazer uma parte de seu partido e, de passagem, para tratar de alavancar à Europa alguma concessão ocasional. CONTEÚDO BREXIT 2406
Depois de quatro décadas cultivando o excepcionalismo britânico, a sensação é de que tudo tenha ido longe demais. Uma extraordinária sucessão de informes sensatos demonstra que o Brexit acarretaria graves danos a longo prazo e um choque de imediato, inclusive, mais ao Reino Unido que à Europa continental. E que tipo de líder submeteria um país e um continente que a duras penas se recuperam da pior crise em décadas a um risco dessa magnitude? Alguém que pensa que já ganhou a partida de antemão, imaginava Bruxelas, sobre a jogada arriscada de Cameron.
Umberto Eco costumava dizer que 25% dos britânicos pensavam que Winston Churchill era um personagem de ficção, segundo uma pesquisa publicada nos jornais diários de Londres. E Bruxelas, nessa linha, chegou a crer que o Brexit fosse uma quimera irrealizável: uma espécie de obra de ficção. Mas as pesquisas, desta vez, obrigaram as instituições a despertarem repentinamente: eles são 50% e têm provocado um surto de nevosismo espetacular. Em parte pela sujeira associada à campanha, tanto pelo lado do Brexit (que joga com os números de imigração), como pelo lado dos que defendem que o Reino Unido permaneça com a União Europeia, que se empenham em demonstrar que o Brexit seria o fim do mundo conhecido.
Mas a vida segue, apesar dos riscos dos referendos, porque nesse tipo de votos frequentemente a ira pesa mais que a reflexão. Bruxelas, apesar dos pesares, seguia confiante de que a sanidade iria se impor. O Reino Unido seguirá na União Europeia, é o que se ouvia nos corredores quilométricos da Comissão e do Conselho, onde os eurocratas têm teorias para tudo: entre 10% de indecisos, sustentavam, há mais gente inclinada ao voto pró-europeu que ao Brexit, cujos partidários têm tudo mais às claras. Ainda assim, Bruxelas decretou o alerta laranja. Pelo que possa suceder. E sobretudo porque teme que, independente do resultado, o referendo não seja mais que um mero sintoma de algo mais profundo, mais sombrio, mais feio: a suspeita de que o projeto europeu já não seja irreversível paira no ar desde que há um ano a Alemanha ameaçou a Grécia de expulsão da Zona do Euro. O Reino Unido é 15 vezes maior que a Grécia. E que ninguém se acomode: pode ser que queira sair, e que em consequência outros países decidam seguir o mesmo caminho. Esse é o verdadeiro temor em Bruxelas.