Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas
A racionalidade humana traz consigo necessidade de explicações sobre a realidade que a cerca, seja ela real interpretação da realidade ou uma perspectiva mítica sobre a mesma. Na simplicidade, a lente preferida para enxergar o mundo muitas vezes é aquela cercada de encantamentos e com a tranquilidade de uma narrativa linear do “felizes para sempre”. Não à toa, mitos e contos permeiam o dia-a-dia, não apenas na explicação da realidade, mas também na conformação de comportamentos de acordo com um ideário social.
Os contos de fadas, então, reforçam estereótipos e condutas sociais esperadas, especialmente pelas mulheres, e que se instalam desde o seio familiar. Princesas devem esperar por seus príncipes, sem ousar lutar por sua autonomia. Famílias serão as monárquicas, formadas pelo rei, pela rainha e seus filhos da realeza e os comportamentos heterotípicos são resguardados aos vilões.
É uma perspectiva simplista da realidade, especialmente porque o ser humano é complexo e forma-se diuturnamente em suas interrelações subjetivas, não podendo ser tomado como um ser completo, acabado e fixo. A própria relação jurídica de filiação não é algo tão simples como algum dia se cogitou, nem mesmo quando se trata da definição de quem seja a mãe. Para além da possibilidade de se utilizar o afeto como critério de um vínculo jurídico, o excepcional é poder conjugá-lo com o biológico. Isso quer dizer que a filiação não está mais apenas relacionada aos vínculos consanguíneos, podendo ser determinada inclusive pelas relações sociais e de forma conjunta, dando ensejo à multiparentalidade.
Em tempos remotos, a impossibilidade de se saber efetivamente sobre a verdade da filiação fez com que houvesse necessária relação entre conceber filhos dentro de uma relação formalizada (casamento) e impunha-se sobre a mulher o dever de fidelidade a fim de que seus frutos fossem necessariamente do marido, sem impossibilitar, contudo, contestação desta paternidade. Afinal de contas, tal vínculo teria profunda influência na distribuição do patrimônio familiar (econômico e genético). Presume-se, então, que os filhos do casamento são do marido, até prova em contrário.
Recentemente, porém, o paradigma da família matrimonial passou por grande rompimento, dando azo a novas conformações familiares. O divórcio e a ascensão da relação derivada de união estável possibilitaram a formação de famílias reconstituídas e a revogação de isenções às condutas em nome da honra desembocaram em inúmeras crianças sem estrutura familiar tradicional, dando-se a possibilidade de reconhecimento da filiação por ato de vontade. Este ato pode ser de genuíno amor, de quem realmente queira exercer o papel da paternidade, não podendo ser desconsiderado tanto na realidade fática quanto na subjetiva de construção da personalidade do menor.
Nesse sentido, os tribunais avançaram pelo reconhecimento da chamada paternidade socioafetiva, quando não se encontra presente o vínculo consanguíneo, mas o vínculo do afeto. Afinal, o ser humano é tridimensional (genético, afetivo e ontológico), sendo rasa a sua concepção meramente biológica. Houve, nesse momento, profunda quebra de paradigma familiar que aprofunda em sua rachadura quando se possibilita abertura à multiparentalidade. Passa a ser possível, pois, ter dois ou mais pais, derivados de vínculos distintos ou não, com as mesmas responsabilidades e obrigações.
Tal situação possibilitaria ardil legal para consecução de objetivos escusos e meramente patrimoniais, de modo que a multiplicidade dos vínculos de filiação precisa ser ponderada no caso em concreto. Não existe supremacia de um critério de filiação sobre o outro, podendo ser complementares na mesma pessoa (situação ideal). Além de garantir a dignidade do filho, em sua construção tridimensional, busca-se a sedimentação e regulamentação dos vínculos jurídicos que surgem a fim de trazer o efeito mais justo e mais próximo do esperado pelas partes.