RIO ? Recluso, alheio a grupos e movimentos, o escritor gaúcho João Gilberto Noll, que teve morte confirmada na manhã desta quarta-feira, cultivou a vida
toda a solidão de seu ofício. Escondido nas zonas de sombra, produziu uma obra
voltada para a exploração do inconsciente e de experiências radicais, como a perda do sentido e a insatisfação com as decepções da vida adulta.
Sua escrita deixou marcas permanentes na produção contemporânea.
noll Expoente de uma safra de autores urbanos surgidos nos anos 1980 que tentaram romper com a hegemonia
do realismo social e do regionalismo, Noll foi uma das pontes entre a velha
tradição romanesca dos anos 1930 e as novas gerações que lhe sucederam, de Carlos Henrique Schroeder a Santiago Nazarian, passando por Daniel Galera, Marcelino Freire e Paulo Scott. Muitos
viram nele um modelo a ser seguido. Apesar da fama de lobo solitário, Noll
sempre retribuiu a admiração dos mais novos. Acompanha a produção desses escritores, e era pouco econômico nos elogios.
? O Noll tinha a marca dos grandes autores brasileiros contemporâneos, como o Moacyr Scliar, Milton Hatoum e Sergio Sant? Anna, que é a
simplicidade e a generosidade com os mais novos ? conta o escritor Paulo Scott.
? Ele nunca se colocou na posição do escritor celebridade, a estrela que deve
gozar as benesses de ser importante. Também nunca entrou nesse jogo político das
relações literárias, essa lógica da interação social que costuma fazer a fama
de um escritor.
Autor de “Habitante irreal” (considerado por Noll como um dos melhores livros da década de 2010), Scott foi amigo, discípulo e advogado de Noll ? na verdade, sua antiga firma
de advocacia em Porto Alegre ajudou o escritor em imbróglios jurídicos durante alguns anos. No final de 2016, Scott convidou o autor para seu aniversário, que chegou uma hora antes
de todos os outros convidados, provavelmente para evitar interações. Mesmo
assim, ele acredita que a fama de outcast de seu antigo “cliente” era um pouco
exagerada.
? Ele sabia que a solidão era uma aliada muito forte na profissão de
escritor, mas, como todo mundo, sempre procurou um relacionamento… Mas nunca é
simples. Algumas vezes ele me confidenciou que, se pudesse, romperia esse
destino de solidão.
Segundo Scott, até a relação de Noll com a cidade era diferente do normal.
? Era um cara que buscava a rua e dentro da rua se confortava. Acho que buscava uma invisibilidade na cidade ? explica Scott.
Isso não significa, no entanto, que não gostasse de frequentar alguns bares de Porto Alegre (como o lendário Ocip), ou que fugisse completamente de eventos sociais.
? Ele gostava de encontrar as pessoas. Sempre me dizia para convidá-lo para festas. A agitação era uma forma de equilibrar esse pacto com a solidão.
A influência de Noll nos mais novos era quase orgânica ? fugia das páginas dos livros. Autor de “Biofobia”, Santiago Nazarian não apenas a leu como a “viveu”. Em 2000, repetiu a trajetória do personagem de “Rastros de verão” e desembarcou em Porto Alegre com o seu namorado na época. Na cidade de Noll, Nazarian circulou pelos cenários descritos na narrativa.
? Poucos anos depois percebi que estava chegando a algum lugar quando dividi minha primeira mesa com ele ? diz Nazarian. ? Foram algumas, em São Paulo, Buenos Aires, Ouro Preto, ele sempre com aquele olhar estrangeiro, ao mesmo tempo generoso e aéreo. Para mim, Noll era o maior de todos. O autor brasileiro que mais me influenciou.
Enviado com Noll em 2011 em uma espécie de turnê pelo interior paranaense
para falar sobre literatura em um evento do SESC-PR, o escritor Luís Henrique
Pellanda passou seis dias na estrada com o colega. Durante a viagem, confirmou
duas de suas facetas paradoxais: a do homem fechado e a do showman, que eletrizava plateias com as leituras de seus textos.
? Eu já o conhecia, muito superficialmente ? lembra Pellanda, autor de “Asa de sereia”. ? Mas estava apreensivo por passar
tantos dias sozinho com ele, na estrada, justamente por saber que ele era tido
como um sujeito muito fechado, que parecia prezar muito esse silêncio em torno
dele. O gelo foi sendo quebrado aos poucos. Ele me pedia para ler algo meu, no
palco, antes da leitura dele. Eu lia coisas minhas, um conto, uma crônica, em
geral falando do primeiro contato dos meninos com a ideia de sexo, preparando
terreno para a leitura dele, um trecho do romance “Lorde”.
Ao ouvir Noll lendo cenas carregadas de tensão sexual, com a sua dicção performática característica ? seca, clara e monótona ?,
a plateia, lembra Pellanda, chegou a se assustar.
? Primeiro com a impressão de que o Noll ?incorporava? algo alheio a ele, a
nós todos, durante a leitura. A atmosfera mudava. E depois havia o trecho
escolhido, propriamente dito. Era um trecho sobre um jantar, se não me engano,
entre o narrador do Noll e um professor inglês, ambos sexagérios, que acabava no
banheiro de um apartamento , na Inglaterra, onde os dois se beijavam. Ninguém
reagia àquilo, não visivelmente, mas dava para sentir que a plateia se
angustiava, ou se revoltava, ou se ressentia. Alguns riam, outros olhavam para o
chão, poucos levantavam a cabeça.
Pellanda lembra que, apesar de serem lugares considerados mais conservadores, como Guarapuava, Campo Mourão, Umuarama, Paranavaí e Maringá, a reação não se dava tanto pelo choque de culturas entre o Brasil urbano e o Brasil profundo ? mas sim, porque, em geral, o público está acostumado “a ver escritores falando sobre leitura dentro de contextos mais inócuos”.
Em Paranavaí, o clima foi tão pesado que, ao entrar na van, Pellanda disse a
Noll: ?Achei que hoje teríamos uma encrenca?. Ele respondeu, rindo: ?Eu também!?
Mas logo ergueu o punho e declarou: ?Mas eu tenho que ler! É um ato
político!?
? Ao ler, era como se ele recriasse sua obra fora da literatura ? explica Pellanda. ? Criava uma perplexidade coletiva, concreta, palpável através do texto, da voz, da imagem, da presença de um homem de sua idade dizendo aquilo tudo num palco.
As leituras em público de Noll, como bem lembrou hoje o autor Michel Laub em seu perfil
no Twitter, “mudam o modo como lembramos desses textos, em vários sentidos que tornam a obra como um todo ainda mais original”. Nada surpreendente para um escritor apaixonado por música, e que dizia escrever como quem compõe. Noll, inclusive, fez parte de um coral na juventude e, segundos amigos próximos, adorava cantar.
? Antes do computador, ele se deixava muito levar pelo som do teclado da máquina de escrever ? lembra o pesquisador Aquiles Alencar-Brayner. ? A musica sempre foi muito presente em sua vida e sua obra. Ele tentava essa sonoridade nas palavras e lia nesse tom pausado, monótono, que era quase uma canção de ninar. Talvez por isso lhe fosse tão importante trabalhar a questao do homem enquanto sozinho. Uma questão que está atrelada, na obra de Noll, a uma promessa de felicidade que cremos quando criança e que de repente nos escapa quando crescemos.
Alencar-Brayner conviveu com Noll em Londres, em 2004. Durante todo aquele ano, o gaúcho foi escritor residente no King’s College, na Universidade de Londres. O pesquisador, que estudava na mesma instituição, tinha terminado um doutorado sobre sua obra e acabou acompanhando de perto a sua experiência inglesa.
? Me chamou muita atenção foi a vida monástica que Noll levava em Londres sempre acordando muito cedo para se dedicar à escrita. Ele adorava fazer caminhadas às margens do Tâmisa e sempre se esquivava de compromissos sociais noturnos. O livro que escreveu em Londres, “Lorde”, assim como os seus outros, continha vários elementos que ele havia experienciado na cidade ? diz Alencar-Brayner, que mais tarde seria convidado pelo próprio autor a escrever a orelha de “Lorde”.
? Noll me confessou que, quando escrevia, sempre salvava várias cópias de seus textos em disquetes debaixo de sua cama, como medida de precaução para evitar que os escritos desaparecessem caso algum ladrão entrasse no apartamento dele. Achei essa revelação muito simbólica, pois provava que, para Noll, os seus textos eram o tesouro maior que ele tinha ? recorda o pesquisador.