RIO – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, toda a Tropicália. Alceu Valença, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo em começo de carreira. Os Secos & Molhados e até o pianista de bossa nova Luiz Carlos Vinhas ? muitos foram os músicos brasileiros que, entre o fim dos anos 1960 e a primeira metade dos 70, buscaram na psicodelia (a música elétrica dos EUA e da Inglaterra que buscava sons nunca ouvidos e a expansão da mente, com drogas ou não) uma maneira de surpreender com sua produção ou apenas integrar-se a um novo momento da arte. Um dos episódios de maior criatividade ? e também um dos mais negligenciados ? da história da MPB volta à tona em breve em livro (?Lindo sonho delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil 1968-1975?, do jornalista e pesquisador Bento Araujo, em disco (?No abismo da alma ? Um tributo ao movimento Udigrudi?, em que bandas da nova psicodelia brasileira releem músicas de seus antecessores de Pernambuco dos anos 1970) e em série de TV documental (?No sub reino dos psicodélicos?, de Bethânia Brandão). links música 31.7
? De uns anos para cá, senti que o rock psicodélico estava crescendo no Brasil, mas pouco se escrevia sobre sua história. Falava-se mais sobre os psicodélicos brasileiros no exterior ? denuncia Bento Araujo, que resolveu tentar um financiamento coletivo para levantar os R$ 45 mil necessários para fazer a tiragem inicial de mil cópias do livro (no domingo, faltando 16 dias para o fim do prazo, ele já tinha arrecadado R$ 54.851). ? Acabei deixando muita coisa de fora, o livro estava saindo do controle. Ainda mais depois que fui juntando os discos de artistas do rock marginal aos de músicos mais sofisticados, como Marcos Valle, Arthur Verocai e João Donato.
O título ?Lindo sonho delirante? (menção cifrada à droga LSD, o ácido lisérgico que fez as cabeças de muitos psicodélicos) vem do compacto que o músico paraguaio Fábio (nome artístico de Juan Senon Rolón, que mais tarde ficaria conhecido por sua associação com Tim Maia) lançou em 1968. O disco ‘Lindo sonho delirante’, de Fábio
Fábio um dos vários personagens pouco falados dessa história repleta de artistas obscuros como Suely e os Kantikus e Loyce & os Gnomos (?uns caras de Limeira que usavam ácido pra caramba?). Do mais ?sofisticado? Marcos Valle, Araujo selecionou o disco ?Vento sul?, que o bossanovista fez em 1972.
? Tudo começou em 1971, quando fiz um show com O Terço. Gostei muito daquele trabalho conjunto de instrumental e vocais ? conta Valle. ? Músicas como ?Viola enluarada? e ?Samba de verão? ficaram muito boas com o tratamento progressivo deles, aquilo me abriu a cabeça. Um tempo depois ficamos dois meses compondo, em clima pé-no-chão, comunitário. Quando vi, todas as letras tinham essa onda de psicodelia. Fiz arranjos com O Terço e com o Fredera (guitarrista do grupo Som Imaginário). Aquele acabou sendo um disco bem diferente dentro da minha carreira.
A seleção de álbuns do livro acabou em 1975, segundo o jornalista, porque este é ?o ano do emblemático ?Paêbiru?? (LP maldito que lançou Zé Ramalho e Lula Côrtes). Com textos em português e inglês, a obra traz resenhas dos discos e deve ser lançada em outubro. ‘Não existe molhado igual ao pranto’, do disco ‘Paêbiru’
?Paêbiru? é um dos discos que levaram outro jornalista, Leonardo Paladino, do selo Tramp Brasil, a bolar uma homenagem a nomes da psicodelia pernambucana, como Zé, Lula e Marconi Notaro (do mítico LP ?No sub reino dos metazoários?). No dia 22, ele joga na internet seu ?No abismo da alma ? Um tributo ao movimento Udigrudi?.
? O pessoal novo conhece o Recife do mangue bit, mas não esses artistas. Era um grupo talentosíssimo que conseguiu fazer música de qualidade psicodélica ? argumenta Leonardo, que se animou a fazer o projeto ao ver o recente boom lisérgico provocado por bandas como a australiana Tame Impala e a brasileira Boogarins. ? Vários artistas toparam participar porque tinham bebido nessa fonte. É um disco colaborativo.
BIKE e Supercordas selecionaram do ?Paêbiru? respectivamente ?Não existe molhado igual ao pranto? e ?Nas paredes da Pedra Encantada?. Do LP ?Ave Sangria? (1975), do grupo de mesmo nome, Graxa refez ?Geórgia, a carniceira? e os Primos Distantes, ?O pirata?. Já de ?Alceu Valença & Geraldo Azevedo? (1972), o primeiro álbum dos artistas, Jan Felipe gravou ?Mister Mistério? (de Geraldo), as Aeromoças e Tenistas Russas foram de ?Planetário? (de Alceu), e Vitor Brauer, de ?Talismã? (dos dois). E do álbum “Molhado de suor” (1974), de Alceu, está “Papagaio do futuro”, com versão de André Prando. ‘Papagaio do futuro’, com André Prando
? Geraldo, Alceu e Lula são muito representativos da música psicodélica do país. Fizeram um movimento pós-tropicália integrado às artes plásticas ? diz Leonardo.
? Eu era doido que alguém gravasse essa música minha (?Mister Mistério?). Tive que ir na Censura liberá-la, nem me lembro mais da letra original. É um mistério! ? brinca Geraldo. ? A nossa psicodelia era uma mistura de várias informações que vinham de Jimi Hendrix e Janis Joplin, de Woodstock. Não havia drogas pesadas, mas todos fumavam maconha e alguns colegas experimentaram o cogumelo de zebu. A consciência do que acontecia só fui ter depois, mas sabia que o que fazia era música contemporânea.
Sem padrão ?certo? de comportamento
Para Geraldo, o LP com Alceu ?tem uma qualidade técnica muito abaixo do que existe hoje?.
? Não tínhamos experiência, mas ele é emblemático pelo repertório.
? Escolhemos gravar ?Planetário? porque achamos interessante a ligação com a nossa estética de ficção científica ? diz Gustavo Palma, tecladista das Aeromoças e Tenistas Russas. ? Eles mostraram como os efeitos são importantes, sejam analógicos ou digitais. Traziam a referência da música de raiz nordestina e juntavam com o que acontecia no momento.
Diretora da série documental de TV ?No sub reino dos psicodélicos?, que deve ser lançada até o fim do ano (ainda sem canal confirmado), a diretora Bethânia Brandão vai além ao comentar a relevância da turma:
? Não fossem eles fazendo essa experimentação e, principalmente, lutando contra um padrão de música e o comportamento que era tido como o ?certo? na época, talvez não se fizesse psicodelia hoje no Brasil ? acredita Bethânia, que foi contemplada com o edital Prêmio Funarte da Música Brasileira, de 2013. ? Essas pessoas são um exemplo de que a liberdade e o amor valem a pena.