“Nasci em Maputo, capital de Moçambique. Tenho 40 anos e, aos 17, comecei a atuar como bailarino de danças tradicionais africanas. Fiz parte da minha formação em dança contemporânea em Lisboa, mas voltei à minha cidade para pesquisar mais sobre o corpo colonizado moçambicano.”
Conte algo que não sei.
Quando se fala em dança, imaginamos um corpo sendo regido pela música. Mas, se pensarmos em um maestro, percebemos que o corpo é que compõe a música. Há uma ambiguidade entre o compositor e o coreógrafo ? o maestro realiza os movimentos para a orquestra tocar a música, que vai reger a ação dos bailarinos. Apesar de o maestro ser um músico, toda a composição musical é influenciada por sua gestualidade. O corpo é o compositor.
Moçambique já foi colônia portuguesa, esteve sob o regime comunista e, agora, vive sob a bandeira da democracia. De que forma a política influencia a arte?
O corpo tem diferentes camadas, e todas elas podem trazer transformações para a sociedade. Estar no palco é um ato de intervenção política, pois há toda uma construção social no corpo. Para experimentar a colonização, por exemplo, uso gestos africanos e os colonizo com o fado português. Assim, imponho um ritmo que nada tem a ver com aquela dança ? isso é uma representação da colonização, dentro do corpo africano.
Ao retirar a dança de seu contexto, os gestos não perdem seu significado?
Quero justamente libertar esses gestos, para “ressignificá-los”. Quem disse que uma dança, por mais tradicional que seja, só pode ser realizada dentro de um determinado ritmo? Se tirarmos o ritmo predeterminado, podemos reinventar essa gestualidade, criando novos contextos.
A dança, então, é uma forma de se conectar com a realidade?
Sim. Mais do que isso, a dança é uma ação de cidadania, um exercício de democracia e de liberdade de expressão. Isso porque o corpo é esse universo, que nos permite transcender e questionar ? sem o uso de palavras.
Um questionamento sem palavras é eficaz?
A língua é essencial, mas, antes da palavra, existem nossos sentimentos. Você tem uma ideia, depois procura as palavras para codificá-la. A ausência desses ruídos que chamamos de palavras pode ser mais significativa. Às vezes, o silêncio fala muito. Por isso faço dança contemporânea. Para questionar, para interagir.
É nesse sentido que a dança pode ser uma intervenção política?
Sim. A sociedade moçambicana sempre foi bastante passiva ? muito provavelmente por essa herança colonial. Fomos muito oprimidos, não tínhamos tanta liberdade. Por isso, ainda hoje, as pessoas acreditam que os dirigentes vão decidir por nós. É preciso cultivar mais participação e engajamento no nosso dever cívico. A dança pode ajudar a corrigir isso.
O que acha da onda conservadora decorrente do Brexit e da eleição de Trump?
Esses são exemplos de como as pessoas estão se fechando cada vez mais, os pensamentos estão muito nacionalistas. Vemos o nascer de uma ?desglobalização?. Os sistemas acabam impondo essas barreiras, esse muros, que fazem com que nos olhemos com estranheza, porque eu sou africano e você, brasileira. Esse radicalismo representa uma pobreza para o mundo. A única coisa que temos que buscar é como conviver juntos.