Cotidiano

Lei da ditadura limita punição a magistrados que cometem crimes

SÃO PAULO ? O envolvimento de magistrados com venda de sentença, associação com narcotraficante e até medidas que atentam contra os direitos humanos resultaram em penas brandas na maioria dos casos. Desde 2005, apenas 76 deles foram punidos, mas com decisões que, na maioria das vezes, não ultrapassaram a transferência de comarca, afastamento temporário ou aposentadoria compulsória. Desse total, todas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 49 casos o juiz pagou sua dívida com a Justiça deixando de trabalhar, mas com rendimento.

A lei que rege a magistratura é de 1979, época em que o país estava sob uma ditadura. Em meio à discussão sobre a lei de abuso de autoridade, alguns casos chamaram a atenção nos últimos anos. A juíza Clarice Maria de Andrade, que em 2007 manteve uma adolescente de 15 anos presa numa cela masculina no Pará, foi punida com dois anos de afastamento e continua a receber salário. Outros casos de repercussão foram os dos juízes Flávio Roberto de Souza, que usou o Porsche apreendido do empresário Eike Batista; e Olga Regina de Souza Santiago, acusada de beneficiar um traficante; e o do desembargador Evandro Stábile, condenado por venda de sentença. Eles foram aposentados.

? Isso é talvez um dos maiores problemas, sob o ponto de vista da regulação funcional da magistratura, que a pior pena possível seja a pessoa praticamente ganhar férias. Considerando o número de juízes no país e o de processos e decisões que eles tomam e se envolvem durante os anos, o número é ínfimo ? diz Ivar Hartmann, professor de Direito Constitucional da FGV Rio.

Mesmo quando a acusação é de desvio de conduta grave, o caso nem sempre vai à Justiça Criminal. Para que isso aconteça, são necessárias abertura de inquérito policial e denúncia do Ministério Público. Só em caso de condenação que não cabe mais recurso, o magistrado perde o cargo e o salário.

? Muitos atos podem ser apenas faltas disciplinares. Outras são graves e podem abranger um tipo penal. Dificilmente isso ocorre. Conheço pouquíssimos casos ? diz o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, ex-corregedor do CNJ.

Em outubro, a juíza Clarice Maria teve a pena revista. Em 2010, o CNJ havia decidido pela aposentadoria, mas o entendimento foi revisto pelo Supremo Tribunal Federal. À época, ela afirmou não ter conhecimento de que a adolescente havia sido levada para uma cela masculina. O GLOBO procurou a defesa de Clarice, mas não teve retorno.

Em junho, o Tribunal de Justiça de MT condenou à aposentadoria o desembargador Evandro Stábile por venda de sentenças. Ele foi condenado à prisão pelo STJ, mas solto por decisão do ministro Ricardo Lewandowski (STF). Até que a ação transite em julgado, Stábile receberá salário de R$ 30,4 mil. O advogado Valter Bruno Gonzaga, que esteve à frente do caso, nega a acusação.

Em 2015, o juiz titular da 3ª Vara Federal Criminal do Rio, Flávio Roberto de Souza, chegou para trabalhar no carro de Eike Batista apreendido pela PF. Ele foi aposentado. Já a juíza Olga Regina foi condenada à aposentadoria por envolvimento com o narcotraficante colombiano Gustavo Duran Bautista. Para o advogado de Olga, Márcio Medeiros Bastos, as provas não foram devidamente analisadas.

Questionado sobre a aposentadoria como pena, o Supremo informou que ?não comenta dispositivos previstos em lei?. Em nota, a Associação dos Magistrados Brasileiros disse que a aposentadoria ?é uma medida administrativa importante para evitar que os magistrados sejam expostos a pressões políticas e econômicas?.