Cotidiano

Berço da revolução, cidade onde Fidel foi enterrado é alvo de repressão

Cuba Fidel Castro (2)SANTIAGO DE CUBA ? ?Aqui ninguém se rende?, dizia a mensagem junto à imagem de Juan Almeida Bosque, que marca a praça onde ocorreu, na noite de sábado, o último funeral público de Fidel Castro, em Santiago de Cuba. O governo da ilha parece levar isso a sério. A despedida emocionada do líder ? cujas cinzas foram enterradas na cidade na manhã deste domingo ? ocorreu em emblemática cidade para a revolução, onde hoje o governo é mais opressor.

A história da cidade de 450 mil habitantes, que tem a alcunha de ?heróica e rebelde? motiva o regime. Se no passado foi em Santiago que começaram movimentos como a independência cubana e a própria guerrilha de Castro, agora a cidade, a segunda mais importante do país, é administrada com rédea curta, para evitar que o ?sangue quente? da população da região mais pobre do país ferva contra o governo.

? Santiago tem a característica histórica de ser contestadora, a pobreza local (maior que no resto do país) parece fazer as pessoas mais rebeldes, tendendo mais para a ruptura que para o diálogo. Isso ajuda a explicar os motivos do regime ser tão duro na cidade ? afirmou Rolando Lobaina, da Aliança Democrática Oriental.

Diferentemente do que ocorre em Havana e em outras cidades pelo interior do país, em Santiago de Cuba a presença do estado é mais visível ? e ostensiva. Diversas esquinas da cidade são marcadas por textos que ?lembram? a qual instituição, como os Comitês de Defesa da Revolução (CDRs), estão vinculados.

? Santiago sofre mais por estar longe da imprensa estrangeira e das embaixadas, o que ocorre ali não repercute tanto quanto o que ocorre na capital. E, além disso, a população local tem menos acesso à informação independente ? afirma Antonio Rodilles, opositor do regime e criador da ONG Estado de Sats, que fica em Havana.

E a estrutura do Estado cria uma espiral de controle. Os habitantes de Santiago, mesmo levando em conta que são mais ?fidelistas? que no resto do país, parecem ter menos disposição em falar mal do regime. Sequer críticas pontuais são ouvidas pela população, que tendem a pintar um cenário “cor-de-rosa” do governo. Muitos dizem que diversas pessoas fazem, de bom grado, o papel de controle da vizinhança:

? As pessoas vivem com medo. Prisões e detenções aqui são comuns, por isso é mais difícil criar movimentos que contestem o governo. A população vive sob grande pressão ? contou ao GLOBO Roberto Gonzales Seria, coordenador local da Aliança Democrática Oriental.

Neste ambiente foi marcado os últimos momentos dos nove dias do funeral de Fidel Castro. O líder, que morreu aos 90 anos na noite de sexta-feira, 25 de novembro, teve as cinzas depositadas no cemitério Santa Efigênia na manhã de hoje. Seus restos mortais agora repousam ao lado de José Martí, grande herói da independência. A cerimônia foi, segundo os poucos presentes no local, ?sóbria, rápida e silenciosa?, apenas com um rápido discurso de Raúl Castro que reafirmou seu compromisso com a revolução socialista. Não foi registrado ato religioso ? Fidel se dizia ateu. Suas cinzas repousaram atrás de uma placa de mármore verde onde se escreveu apenas “Fidel”. Jornalistas internacionais não puderam acompanhar o momento.

Antes disso, na noite de sábado, um grande evento ? a TV cubana disse que havia no local 500 mil pessoas, mais que toda a população da cidade, o que teria sido obtido com caravanas de outros locais ? marcou a despedida pública do líder, cujas cinzas percorreram mil quilômetros em caravana pelo país. Nove cubanos discursaram para a população, representando trabalhadores, jovens, estudantes, camponeses, mulheres e intelectuais entre outros grupos. Coube a Raúl Castro encerrar o evento, muito mais emotivo que o de Havana, na última terça-feira, onde o público mais apático acompanhou quase duas dezenas de discursos de presidentes e representantes de governos estrangeiros.

? Sim se pôde, se pode e se poderá superar qualquer obstáculo, ameaça ou turbulência contra a implementação do socialismo em Cuba ? disse Raúl no evento, marcado por muitas manifestações espontâneas de carinho a Fidel da população, em cartazes e camisetas, e gritos de apoio ao regime e de louvor ao líder morto.

Raúl afirmou que vai propor uma lei para impedir que existam cidades, praças, ruas, escolas ou instituições com o nome do líder, atendendo ao pedido de Fidel de evitar a ?personalização? da revolução. Mas, desde a morte do Fidel, o país segue tomada de cartazes com a imagem do ex-presidente e a população ?incentivada? a demonstrar carinho com a frase que marcou o funeral: ?Eu sou Fidel?.

? Cheguei aqui cedo para não perder nada. Este é um dia histórico, quero despedir em grande estilo do nosso maior líder ? afirmou Joaquim Pérez, estudante de engenharia, que desde às 14h estava no local, cujo evento só começou às 19h (22h do Brasil).

Raúl lembrou os momentos de superação do regime, como nos anos 1990, quando o fim da União Soviética levou a uma queda de ?34,8%? do PIB do país, que soube ?superar o momento sem comprometer a educação ou a saúde?, disse o presidente, afirmando que a mortalidade infantil de Cuba é menor das Américas, incluindo o Canadá ?e até mesmo os Estados Unidos?. Ele ainda conclamou a população a jurar, em gritos, o compromisso com os princípios da revolução.

Diversas personalidades e autoridades estrangeiras, como Maradonna e Nicolás Maduro, estavam no local. Do Brasil, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff eram os mais relevantes. Nenhum deles discursou ou sequer foi citado no evento, mas a população recebeu os brasileiros aos gritos de ?Dilma, Lula, Santiago les saluda?.

Antes do evento, Lula deu uma entrevistas para os meios cubanos. Lula disse que Fidel era o último mito vivo no mundo.

? Poucas vezes conheci uma pessoa com o comportamento e a dignidade de Fidel – disse o ex-presidente brasileiro, que criticou o comportamento da imprensa brasileira sobre a morte de Fidel. ? Eles não o trataram com o respeito que merecia.

Com o fim da cerimônia, Cuba começou, aos poucos, a retomar a normalidade total. Bebidas alcoólicas eram mais fáceis de ser encontradas e turistas sonhavam em já encontrar música pelo país – algo suspenso desde o anúncio da morte de Fidel. Oficialmente, o luto só acabaria na segunda-feira. Mas, como já é uma tradição no país, a população encontrava seu ?jeitinho? de sobreviver. Siempre.