A recente Portaria 424 do Ministério da Economia manda cortar até papel higiênico e cafezinho. É o governo federal no rumo de um apagão operacional. Mas a portaria do ministro é só a confeitaria do bolo. O governo federal se prepara para sufocar gastos essenciais, porque a lei manda manter intactas despesas burocráticas.
Para não mexer em altos salários, aposentadorias milionárias e juros bilionários, o governo corta luz, água, obras, controle de queimadas e segurança nacional. O gasto total não para de crescer, mas os cortes só podem recair sobre o que é essencial. O aumento da despesa improdutiva do setor público subiu mais de sete pontos porcentuais do produto interno bruto (PIB) nos últimos anos e hoje trava o setor privado, pagador da conta, numa semirrecessão crônica.
No Orçamento da União há dois tipos de gastos, os ditos “obrigatórios” e os chamados de “discricionários” – nome complicado, que significa serem esses os “passíveis de cortes”. Começa aí o drama de todos os últimos ministros da área econômica.
O Brasil gastador passou em lei a obrigatoriedade de todos os gastos que afetam as corporações e os Poderes. Puseram na Constituição uma aberração que só existe aqui, o “reajuste anual global” de todos os salários e subsídios no governo federal (artigo 37, inciso X da Constituição federal). Com essas três palavrinhas, o governo está rigorosamente proibido de governar.
Em recente decisão – pendente de apenas um voto – na Suprema Corte brasileira, os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) confirmam o absurdo kafkiano da má governança pública no País. Os senhores magistrados estão para bater o martelo, proibindo que o governo use a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) para ajustar o horário de trabalho e, portanto, as verbas remuneratórias da legião de funcionários públicos indemissíveis.
O STF, na prática, mandou o ministro da Economia retomar suas caminhadas no Leblon, já que em Brasília pouco lhe restou a fazer. O governo é gestor de um orçamento 95% congelado por obrigatoriedades. O ministro tem para cortar os restantes 5%, que são, justamente, os gastos mais prementes, os dispêndios mais “produtivos”, pois representam investimentos em infraestrutura, a conta de luz na universidade, a gaze no hospital, o lápis na escola.
Ao deixar para o governo apenas a opção de cortar o essencial, na prática a lei ordena parar o governo no caso de uma insuficiência de arrecadação. Ora, esse dispositivo, embora constitucional, ofende frontalmente o princípio maior da eficiência na administração pública, constante do enunciado do próprio artigo 37 da Carta Magna. O Supremo Tribunal Federal, pelo visto, não leva isso em conta.
Mas o que Jair Bolsonaro poderia, ainda, fazer, ou já ter feito desde o primeiro dia de seu governo?
Primeiro, dar o exemplo, cortando na própria carne. Presidente não precisa gastar, pois sua vida é bancada pelos contribuintes. Poderia determinar corte de 50% (o ideal seriam 100%) da sua remuneração, o mesmo para seu vice e seus ministros (salvo apresentação de atestado de pobreza). Segundo, poderia contingenciar 10% de todo o Orçamento federal sem exceção, perfazendo um total à volta de R$ 140 bilhões em economias, ou seja, o número exato do déficit primário de 2019. Terceiro, permitir ao Congresso Nacional, em 60 dias, modular o corte médio geral de 10% por critério de essencialidade. Rodrigo Maia e seus companheiros parlamentares poderiam, então, ajustar os cortes efetivos de cada rubrica no Orçamento conforme sua essencialidade, desde que respeitando, no cômputo final, a economia média de 10%, ou seja, de R$ 140 bilhões.
Essa fórmula simples e corajosa já foi posta em prática em países sérios como a Alemanha de Angela Merkel, em 2010, e por Barack Obama, em 2012, nos Estados Unidos. Ambos tinham ajustes fortes a fazer para destravar suas economias após o estrago da grande recessão de 2008-2009. E ambos toparam o risco do desgaste de popularidade. Deu certo para ambos, pois a economia se destravou e os dois foram reeleitos em seguida.
Propus esse caminho ao presidente Michel Temer no início da sua gestão (abril de 2016), assim como havia sugerido essa mesma saída ao ministro Joaquim Levy, em 2015. Diversos estudos do Instituto Atlântico demonstraram, à época, que se ganharia rapidez na estabilização da dívida interna e todos, afinal, sairiam ganhando. Mas é preciso que o governo tenha coragem para enfrentar, com bons argumentos, os amigos da gastança e mostrar que a festa acabou.
Enquanto o presidente da República continuar colocando disco na vitrola, é óbvio que o arrasta-pé vai prosseguir. Até porque quem não gosta de um forró?
O Brasil está travado por excesso de sucção de dinheiro bom, que sai do bolso de famílias e empresas para alimentar o gasto federal, que não cabe mais na pesada carga tributária. A sucção (crowding out) da economia produtiva pelo setor governo está na raiz do estancamento do País. Não existe outra explicação. Mas isso dá para resolver, e rápido.
O presidente tem de autorizar seu ministro a pôr um fim no déficit primário de R$ 140 bilhões já em 2020. Ao ensejo da votação da LOA (Proposta da Lei Orçamentária) de 2020 no Congresso Nacional, melhor ocasião não haverá. Salvar o crescimento do próximo ano é o objetivo que está em jogo.
O governo pode introduzir o “dispositivo Merkel-Obama” na próxima PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do Pacto Federativo. Se o fizer, a economia vai se destravar e os brasileiros serão gratos pela coragem desassombrada dos seus líderes.
Paulo Rabello de Castro é economista, pesquisador sobre temas previdenciários, foi presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – e-mail [email protected]