Quando ainda jovem, lendo pela primeira vez o novelista russo Leon Tolstoy, memorizei uma explicação sobre o que significa ser judeu: “…aquele ser sagrado que trouxe dos céus o fogo eterno com o qual tem iluminado o mundo inteiro. Ele é a nascente, o manancial, a fonte da qual todos os outros povos sorveram suas crenças e suas religiões”.
Dessa época em diante, passei a observar melhor os judeus. Sua maneira de ser, pensar a vida, agir, propor soluções que garantam a paz para todos. Um compromisso com as raízes, fé inabalável, respeito absoluto à educação e à cultura. O desejo de empreender e garantir digna sobrevivência para sempre. Solidariedade com seus irmãos. Esse conjunto de valores está sempre nos mandamentos do bom judeu.
Mais tarde, conheci o rabino Henry Sobel. Um ser humano simpático à primeira vista, alto, magro, cabelos longos, brilhantes olhos azuis, sorriso largo, calmo e um sotaque inconfundível de quem, embora estivesse vivendo aqui há muitos anos, parecia manter um vínculo com a sua origem – um belga que fala inglês norte-americano.
Mesmo ocupando posição de destaque no rabinato da Congregação Israelita Paulista, a poderosa CIP, Sobel não se omitiu e, corajosamente, uniu-se ao cardeal católico Dom Paulo Evaristo Arns e ao pastor presbiteriano Jaime Wright na defesa dos presos políticos. Soube exigir respeito e direitos humanos para aqueles que combateram o Golpe Militar que, em 1964, instaurou ditadura no Brasil. Sobel defendeu a liberdade de imprensa, jornalistas e veículos de comunicação.
E foi muito além da participação política responsável. O rabino Sobel, enquanto viveu, disse “presente” – de corpo e alma – às ações humanitárias em busca de justiça social para velhos, crianças, deficientes, negros, mulheres e outras minorias ainda vergonhosamente discriminadas neste País. E, sem medo, com sua voz pausada e firme, enfrentou toda e qualquer tentativa de desrespeito à liberdade.
Cada uma das vezes que eu presenciei, e foram muitas, o rabino Sobel lutando por oprimidos, necessitados e sofredores, eu lembrava das palavras de Tolstoy sobre o que significa ser judeu. E via naquele doce guerreiro algo como se o povo judeu fosse uma Torá viva, e ele uma letra dourada do livro sagrado.
No contexto cruel da violenta e fria vida das grandes cidades, o rabino Sobel perdeu o sono. E, como qualquer um de nós, embora sua leveza interior, começou a sentir-se mal, a não ter ânimo para trabalhar e seguir ajudando os semelhantes, levando esperança e fé aos seus irmãos. Porque, para o judaísmo, somos todos irmãos, filhos de um mesmo Pai.
No contexto da sabedoria popular que diz “de médico e de louco todo o mundo tem um pouco”, o mortal rabino Sobel resolveu tomar comprimidos para dormir. Passou a usar algum desses que as pessoas receitam entre si, nas horas de um bate-papo informal.
Os comprimidos tiveram o efeito previsto, Sobel venceu a “insônia severa”. Mas – o que ele não esperava – vieram os efeitos colaterais: “confusão mental e amnésia”, sintomas típicos de quem tomou hipnóticos diazepínicos na dose errada. Tanto que o bom rabino Sobel dormiu mesmo acordado. E deu oportunidade a um outro ser, que, independentemente de seus bons costumes, sabe-se lá por quais razões, furtou quatro gravatas numa elegante avenida de Palm Beach, na Flórida, Estados Unidos.
O rabino Sobel esteve internado – comprovadamente doente, segundo boletim médico do respeitado Hospital Albert Einstein – para tratamento de saúde. Antes, porém, numa demonstração de humildade e respeito, licenciou-se do cargo que ocupava no rabinato da CIP e, após a primeira medicação correta seguida ao lamentável episódio que viveu, mais uma vez sem medo, concedeu entrevista coletiva à imprensa e, com muita dignidade, pediu desculpas pelo ocorrido.
O rabino Henry Sobel, um homem de coragem e boa vontade, morreu nesse 22 de novembro de 2019, aos 75 anos. Perdemos um cidadão solidário e comprometido com nobres causas que transcendem supostas obrigações religiosas e raciais. Foi iluminar o céu.
Ricardo Viveiros é jornalista e escritor, é membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e da Academia Paulista de Educação (APE)