Não é incomum ver notícias de pessoas em situação análoga à escravidão, em pleno século XXI, com a justificativa de assistência ou caridade. Parece impensável que alguém possa submeter a dignidade de outrem sob o argumento de caridade. Contudo, há quem o faça com seus filhos. Mesmo com as proibições legais quanto o trabalho infantil, a realidade demonstra a alienação laboral desde a tenra infância.
A dramatização de Monteiro Lobato em “Negrinha” não é de todo ficcional. Na sociedade de desigualdades sociais, o trabalho infantil apresenta-se como uma das consequências, em razão da sobrevivência familiar. Soma-se a isso a crença do trabalho como dignificante e educador, de modo que as autoridades familiares pregam a obrigação dos afazeres domésticos da criança para o seu desenvolvimento sadio, especialmente se for menina.
Desde cedo, portanto, apreende-se a desigualdade de gênero e se faz limitada a perspectiva educacional. Sem considerar os aspectos neurológicos e cognitivos, as crianças e os adolescentes são “adultizados”, com uma carga de responsabilidades que deveria ser dos provedores. A própria lei, repetindo paradigmas do passado, garante como direito dos pais a cobrança de trabalhos infantis compatíveis com sua idade e desenvolvimento, na contramão das convenções internacionais sobre o tema.
Não se quer defender, porém, que criança não deve ter qualquer responsabilidade, a partir de determinada idade, mas se quer desvelar a profundidade da cultura patriarcal até os dias atuais, que oculta a desresponsabilização do homem no cuidado familiar e doméstico e a transferência dessa responsabilidade aos mais vulneráveis.
O poder familiar não se trata de poder absoluto dos genitores sobre os filhos menores, como foi outrora. Pelo contrário, em razão dos princípios constitucionais, a proteção dos menores deve ser integral e realizada pelos pais, pela sociedade e pelo Estado, conjuntamente. Logo, a proteção da dignidade da criança e do adolescente implica em responsabilidade por parte dos genitores.
Quando a Constituição Federal prevê a liberdade quanto ao planejamento familiar, trata também da paternidade responsável, isto é, os adultos devem se responsabilizar na garantia dos direitos da prole. E quando o esforço parental não for suficiente, o Estado poderá ser chamado, na medida em que é considerado o maior guardião dos direitos e garantias fundamentais.
Crianças e adolescentes, em fase de desenvolvimento de sua personalidade, além dos aspectos cognitivos, psicológicos e relacionais, dependem do amparo da maturidade dos genitores para alcançar a plenitude de sua dignidade. Certamente, aqueles deverão aprender sobre os afazeres domésticos mais simples, tendo em vista que a família se pauta na solidariedade e no auxílio mútuo, contudo, tais tarefas em medida alguma podem prejudicar o direito fundamental à educação e o direito de brincar. Este é o verdadeiro trabalho da criança, pois estimula o progresso cognitivo.
Além do mais, falando em corresponsabilidade parental, dada a oportunidade da mulher trabalhar fora de casa e contribuir com as despesas domésticas, em igualdade de condições, é imperioso que o homem se responsabilize pelos afazeres do lar e pelo cuidado dos filhos na mesma proporção, a fim de evitar a sobrecarga mental e laboral da mulher.
Não é o filho mais velho que tem que cuidar do filho mais novo ou a criança que deve gerenciar o trabalho doméstico ou as finanças, são os pais. Filho, portanto, dá trabalho, não tem que trabalhar.
Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas