Cotidiano

Yamandu Costa toca com orquestra jovem e lança app

RIO – Hoje é dia de visita na casa de Yamandu Costa. O violonista gaúcho recebe os 14 membros da Camerata Jovem da Ação Social pela Música ? vindos de comunidades como Complexo do Alemão, Morro dos Macacos e Pavão-Pavãozinho ? para iniciar, em sua espaçosa sala de estar, uma série de ensaios que culminará em dois shows, na sexta e no sábado, na Sala Cecília Meireles (?eu convidei esses meninos porque fiquei emocionado com a paixão deles pela música?, diz). Entre um encontro e outro, ele trabalha num novo CD solo, cujas 13 faixas começaram a ser gravadas na última quarta-feira, e numa novidade que o deixa empolgado: um aplicativo pelo qual oferecerá registros inéditos e de arquivo feitos ao vivo e em estúdio, masterclasses exclusivas e partituras.

Conciliar tudo não é difícil. De abril a outubro do ano passado, Yamandu construiu um pequeno estúdio na cobertura onde mora, na divisa entre Botafogo e Laranjeiras, e transformou o lar em centro de operações. É dali que ele alimentará o aplicativo, batizado com seu nome. Ele será enviado hoje para a aprovação da Apple e deverá chegar aos iPhones até o fim deste mês e à Apple TV em fevereiro, contendo material gratuito e pago, com a opção de uma assinatura (que dará direito a uma faixa inédita por mês). Assim que acabar o novo CD solo, o violonista já tem outra missão: registrar cerca de 50 músicas instrumentais e 30 canções que mantém ?engavetadas?. Nesse acervo, contam-se 22 canções feitas com Paulo César Pinheiro, das quais pretende gravar 17 com a própria voz.

Yamandu Costa apresenta uma música inédita

? Pensei em chamar um cantor, mas resolvi fazer isso eu mesmo, com o maior cuidado. Desde criança eu canto. Comecei no grupo do meu pai, Os Fronteiriços. Não tenho a pretensão de me lançar agora em carreira de cantor. Mas as canções são parte importante da minha produção musical, e não tenho por que ficar reticente com essa faceta ? argumenta Yamandu, que tem pressa para deslanchar o projeto. ? Embarco para a Escócia e o Japão no dia 24 (quando faz aniversário de 37 anos), volto, acabo o disco solo e assumo o compromisso de gravar as músicas com o Paulinho (César Pinheiro). Essa parceria já tem três ou quatro anos. Ele até já parou de fazer músicas comigo, porque diz que não faz música para gaveta. Paulinho falou sobre o Nordeste, com Lenine, e sobre a Amazônia, mas a primeira vez que escreveu temas do Sul foi comigo. Quero continuar essa parceria.

Yamandu também tem repertório inédito já gravado que faria a alegria de qualquer fã de jazz e da música popular brasileira. Recentemente, recebeu em sua casa o guitarrista francês Kevin Seddiki (conhecido por parcerias com Al Di Meola), com quem registrou cinco músicas. Já com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, morto no ano passado, produziu 13 faixas ainda não lançadas:

? Tudo começou quando eu fiz uma música para ele chamada ?De onde vem o som??. Ele acrescentou a resposta ?Vem da lua?, e nós a tocamos juntos. Daí, gravamos Caymmi (cantarola a melodia de ?Quem vem pra beira do mar?); uma improvisação chamada ?Maracatu dos Andes?, porque a levada do maracatu do Recife tem muita ligação com a música andina; uma música do Waldemar Henrique; ?O trenzinho do caipira? e um prelúdio para violão de Villa-Lobos, sendo que Naná fez a percussão no corpo; o ?Mafuá? de Armandinho Neves; uma música que eu fiz para ele (Naná) chamada ?Pandeirada?; uma chamada ?Vento dos mortos?, que fiz em homenagem ao Erico Verissimo… muita coisa. Já faz sete ou oito anos. Mas não vou mexer nisso agora. Daqui a algum tempo, eu falarei com a família dele para decidir sobre isso.

OITO MESES DE ESTUDO

Por ter tocado também com Dominguinhos e Paulo Moura pouco antes de eles morrerem, o gaúcho conta, munido de uma cuia de chimarrão e um senso de humor negro, que adquiriu uma reputação indesejável:

? Tem gente que não quer mais nem gravar comigo. O violonista Marco Pereira é um que brinca sobre isso. Nós queremos gravar um duo de violão, mas ele diz que tem medo, que já está com uma certa idade ? ri Yamandu, que mantém o tom galhofeiro ao explicar por que abandonou um de seus trabalhos mais inusitados, o de sócio da casa noturna Semente, na Lapa. ? Quem gosta de noitada não pode ser dono de bar.

Da gravadora Biscoito Fino, ele não tem intenção de sair. Por meio dela, lançará, em março, o CD ?Quebranto?, com o violonista Alessandro Penezzi.

? É um disco com referências à escola do violão brasileiro e à escola latina, que eu trago da fronteira do Brasil com a Argentina e que o Penezzi busca dentro da música flamenca. Tem uma coisa cigana no disco ? define Yamandu, que também convidou o acordeonista gaúcho Bebê Kramer para uma visita musical à sua casa. ? Com o Bebê, ainda estou discutindo repertório. Mas quero fugir do conceito de CD. Penso em montar um espetáculo no qual a gente conte histórias no palco. Claro, a música estará em primeiro plano. Mas a gente contaria histórias de nossas famílias, faria esquetes. Eu já faço um pouco disso nos meus shows. Isso relaxa as pessoas. Em se tratando de uma música intelectual, quando você faz rir, essa música entra mais (na cabeça dos ouvintes). Quando você quebra o gelo, as pessoas ficam mais emotivas e aceitam melhor o que você propõe. A formalidade afasta as pessoas.

A observação é de um músico que transita como poucos entre os ambientes clássico e popular, ora protagonizando concertos com orquestras sinfônicas, ora dando canja com Zeca Pagodinho ou sendo presenteado com uma música de Gilberto Gil (?isso foi um abraço musical que Gil me deu. Quero tocar essa canção com ele?, avisa).

? Sou um músico popular que, por acaso, se aproximou das orquestras. Não digo que não vou tocar mais concertos clássicos. Para mim, foi um aprendizado os que toquei. Mas é uma trabalheira… O que o Vagner (Cunha) fez para mim, eu fiquei oito meses trancado num quarto aprendendo. É muito trabalho para tocar apenas uma ou duas vezes. Além disso, não é uma linguagem que eu vá fazer melhor do que os profissionais dessa área. Eu escuto o (Fabio) Zanon tocando o concerto de Villa-Lobos, e é lindo. Eu não tenho aquele acabamento, não me proponho a isso na minha maneira de tocar ? garante Yamandu, que contou com a ajuda da mulher, a violonista clássica Elodie Bouny, para estudar o ?Concierto de Aranjuez?, de Joaquín Rodrigo. ? Ela me ensinou a estudar com metrônomo, e aquilo me revelou uma nova maneira de encarar a música. É curioso, porque a dissertação de mestrado dela é sobre lacunas nas formações dos violonistas clássicos e populares. O clássico inveja a capacidade de improvisação do popular, e este inveja o som bonito e o acabamento daquele.