Cotidiano

Vitória numa campanha perdida

Globo News ? Espaço Aberto Miriam Leitão Cem anos, meu velho. Cem anos. Tantas vezes eu o encontrei. Ostento na parede um retrato em que tenho a sua mão no meu ombro. Sei o dia e lembro do que me dizia quando fomos fotografados. Era uma reflexão sobre o poder, fugaz e transitório. Um colega fez a foto para eu guardar o momento. Emoldurei. Eu o entrevistei várias vezes em São Paulo, em Brasília. Houve muita chance, mas eu nunca lhe disse como foi a primeira vez que o vi pessoalmente e o impacto que isso me causou.

Entrei naquele auditório de Vitória sem esperança. Era muito jovem, tinha um filho recém-nascido, e olhava o futuro com sentimento de derrota. Eu era pouco mais que uma criança, cuidando de outra criança, e não acreditava no futuro. Isso é uma contradição. Desafina. Era primeiro de dezembro de 1973, o país crescia a 11%, o governo calava todas as vozes discordantes. Todas?

Não a de Ulysses.

Coisa mais estranha é um anticandidato. Foi difícil compreender o significado desse movimento político. Ulysses saiu pelo país numa campanha sem chance de vitória, como um Quixote disposto a investir contra os moinhos. O governo deve ter ficado confuso. Criou uma eleição cenográfica e vai aquele cidadão, magro, de olhos azuis e sem medo, entra na cena como um personagem incômodo e faz seu papel real no cenário falso. Se havia uma eleição e se o governo dizia que o novo general era um candidato, então é porque poderia haver outro candidato. Ele era a verdade na mentira, revelava a falsificação da cena e ampliava a clareza da sua mensagem. Percorreu o Brasil, e deve ter tocado muita gente. Ulysses era de emocionar. Palavra forte, jeito altivo, convicto e destemido.

E foi no meio desse roteiro de uma campanha perdida que ele desembarcou na ilha de Vitória. Fui ouvi-lo, sem expectativa. Lembro-me que fiquei num ponto em que pudesse sair sem constrangimentos, no momento que quisesse. Fiquei até depois do fim. A pesquisa da ?Gazeta? achou, a meu pedido, a reportagem do dia 2 de dezembro que registrou o evento. Ele defendeu a suspensão da censura à imprensa, o fim do AI- 5 e do decreto 477 e pediu a volta do habeas corpus. Parece pouco e era muito. Ele queria também que o país perdesse o medo. Em certo momento da fala de Ulysses, eu entendi que a democracia era possível e havia com o que sonhar.

Chorei, por ter compreendido o que até então estava encoberto pela névoa que embaçava os olhos de quem havia chegado à mocidade nos difíceis anos de 1970. Ulysses abriu a janela, mostrou o futuro e eu vi.

Para isso existem os líderes. Para que em momentos difíceis eles apontem o horizonte. Com o futuro restaurado, decidi, naquele comício da anticandidatura, que seria dele o primeiro voto que desse para presidente da República. E foi o que fiz, em 1989. Naqueles 6% de votos que ele recebeu estava o meu, do qual ele se tornara merecedor, dezesseis anos antes. Era apenas um voto, mas era a minha retribuição. Cada um de nós teve um líder em um certo momento. Eu tive Ulysses. E precisava tanto.