Cotidiano

Violações contra liberdade artística cresceram 119% em 2016

RIO ? Aos 39 anos, Amjad Sabri era um fenômeno em seu país, o Paquistão. Carismático, filho de um popular músico paquistanês, Sabri era ídolo de um gênero conhecido como qawwali, um estilo do sul asiático surgido há mais de 700 anos, cujos cantos geralmente exaltam o amor e a devoção a Deus. Trata-se de uma expressão musical do sufismo, a corrente mística do Islã. E Sabri era o seu mais querido representante.Links censura

Tanto que, em 22 de junho de 2016, Sabri foi convidado a participar de um programa matinal numa TV paquistanesa para levar consigo seu qawwali. Ele falou, recitou versos e cantou. A letra de sua última música gravada na TV dizia: “Quando eu tremer na minha tumba escura, caro Profeta, olhe por mim”. Sabri, então, deixou o estúdio em direção a outro programa de TV, para mais uma gravação. No caminho, dois homens numa moto fecharam seu carro e atiraram contra o músico. Depois, o crime foi revindicado pelos radicais do Talibã, para quem as músicas de amor e paz significavam uma blasfêmia contra o Islã.

Sabri foi um dos três artistas assassinados em 2016 em consequência de sua arte (os outros dois eram de Iraque e Burundi). Sua morte representou, também, um dos mais graves entre os 1.028 casos de identificados de repressão artística no documento “Arte sob ameaça – Estatísticas anuais sobre censura e ataques contra a liberdade artística em 2016”. O trabalho é feito anualmente pela Freemuse, uma organização criada em 1998 na Dinamarca e desde 2012 consultora do Conselho Econômico e Social da ONU. info – censura violacoes arte

O trabalho da Freemuse consiste em oferecer apoio a artistas ameaçados e montar uma rede para coibir casos de opressão em todo o mundo. Seu relatório “Arte sob ameaça” reúne situações documentadas no ano anterior, e impressiona como o número sobe sistematicamente, em parte pela melhoria no processo de coleta de informações da Freemuse, mas também pelo efetivo aumento de ataques contra a liberdade de expressão. As 1.028 violações de 2016 indicam um crescimento de 119% em relação a 2015 (469 violações) e de 337% em relação a 2014 (237).

Além dos três artistas assassinados em decorrência de seus trabalhos como artistas, 2016 teve dois sequestros, 16 ataques, 84 prisões, 43 ações judiciais, 40 perseguições ou ameaças e 840 atos de censura praticados por governos. A maior concentração de violações ocorreu na Ucrânia, com o anúncio da total proibição de 544 filmes e séries, a maioria deles de origem russa, banidos em decorrência dos conflitos políticos entre os dois países.

Mas o líder em violações graves (mortes, sequestros, ameaças etc) foi o Irã, com 30 casos, entre esses a prisão de 19 artistas por ordem do governo (O Irã ficou em segundo em 2015, atrás da China). A maioria das acusações são contra músicos iranianos, e envolvem termos como “insulto ao sagrado”, “propaganda contra o Estado” e “disseminação de depravação”. Em 5 de novembro, por exemplo, o rapper Amir Tataloo foi condenado a cinco anos de prisão e 74 chibatadas por “divulgar a imoralidade ocidental” em suas letras e videoclipes.

fd18adee2a148fdc37a5c56ebdfa4427_a2945e2dc1d073a6e3ee3b8b9ad8b6bb503x500_quality99_o_1b0nk4vmu1d75ima4uv1po2scsa.jpgEm segundo lugar entre as violações graves de 2016 ficou a Turquia; em terceiro, o Egito; em quarto, a Nigéria; e em quinto, a China. Um dos casos de ataques a artistas na Turquia envolveu o escultor Ali Elmaci. Ele expunha no Festival de Arte Contemporânea de Istambul, em novembro, quando um grupo de cerca de 30 radicais islâmicos invadiu o local exigindo a remoção de uma escultura de uma mulher vestindo um biquíni estampado com o rosto do antigo sultão otomano Abd-ul-Hamid II. Elmaci foi ameaçado, acabou cedendo e retirou a escultura da exposição.

Como ocorreu na Turquia, o relatório da Freemuse mostra que a religião ainda foi um dos principais motivadores de violações contra a liberdade artística no ano passado. Mas também foi possível perceber um aumento de situações envolvendo grupos nacionalistas e populistas, uma tendência política de 2016 que começa a influenciar as artes, e que também ganha eco em grupos religiosos. Quando governos populistas e nacionalistas, assim como outros grupos em posição de poder, forçosamente tentam impor uma única narrativa dominante, o risco para os artistas cresce

Na Rússia, as autoridades cancelaram shows das bandas de heavy metal Belphegor (austríaca) e Nile (americana), marcados para 23 de abril, alegando que elas eram satanistas e ofendiam a Igreja Ortodoxa, instituição com forte ligação com o Estado. O vocalista da Belphegor foi até atacado por um fundamentalista no aeroporto de São Petersburgo.

Nos EUA, em fevereiro, o Centro Comunitário Judaico Michael-Ann Russell, localizado em Miami, cancelou a exibição da peça “Crossing Jerusalem”, depois que membros da comunidade judaica reclamaram do que chamaram de um “falso paradigma sobre o conflito Árabe-Israel”. A peça, escrita pela inglesa Julia Pascal, narra 24 horas da vida de uma família israelense durante a Intifada de 2002.

Já na Bolívia, um mural pintado por um coletivo feminista na fachada do Museu Nacional de Arte foi pichado no dia seguinte à sua conclusão, em novembro, devido ao que os vândalos chamaram de “imagem negativa” do Estado boliviano e da Igreja Católica.

? Quando governos populistas e nacionalistas, assim como outros grupos em posição de poder, forçosamente tentam impor uma única narrativa dominante, o risco para os artistas cresce ? explica Ole Reitov, diretor-executivo da Freemuse. ? A expressão artística não se enquadram e não devem se enquadram numa única moldura. Uma sociedade saudável necessita de vozes criativas.

O Brasil aparece com apenas um caso no relatório da Freemuse (em 2015 o país era citado pela perseguição ao funk, mas não houve registros documentados pela organização). A violação foi a censura, em janeiro de 2016, de outdoors com o texto do poema “Quadrilha”, da artista Livia Natália, na cidade de Itabuna, Bahia. Os outdoors foram instalados por um projeto de promoção da arte poética, finaciado pelo Fundo de Cultura do Estado da Bahia, até que a pressão de policiais militares e políticos fez com que o governo os removesse das ruas.

O poema de Livia faz referência ao famoso “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade. A estrofe destacada no outdoor era esta: “Maria não amava João. / Apenas idolatrava seus pés escuros./ Quando João morreu,/ assassinado pela PM,/ Maria guardou todos os sapatos.”