Cotidiano

Vinte anos após sua morte, Idries Shah tem sete títulos inéditos lançados no Brasil

62878252_SC Idries Shah autor e professor da tradição Sufi que escreveu dezenas de livros sobre (1).jpgRIO – Odia 23 de novembro marcou a passagem dos 20 anos da morte de Idries Shah, um
dos maiores autores do sufismo no século XX. Pouco conhecido no Brasil, o
indiano publicou mais de 35 livros, além de cerca de 500 artigos. Deu
conferências em inúmeras universidades da Europa e dos Estados Unidos e foi
traduzido em 12 línguas, tendo vendido mais de 15 milhões de livros no mundo
inteiro. Por aqui, a efeméride é marcada pela publicação de sete títulos de
Shah, inéditos no Brasil, pela editora Tabla. Nos três livros que compõem a
caixa ?Nasrudin?, ele reuniu diversas histórias que coletou do personagem
clássico do Oriente Médio. Os outros quatro títulos são ?Uma gazela velada?, ?As
sabedorias dos idiotas?, ?Aprender e aprender? e ?Reflexões?.

Uma das grandes façanhas de Idries
Shah foi ter ?traduzido? o sufismo para o ?nosso tempo? e para a ?nossa
sociedade? ? entre aspas para lembrar que não suponho uma unidade nem em um nem
em outra. Para dar uma ideia do porte da façanha, sugiro ao leitor que imagine
que Viveiros de Castro fosse um índio e se pusesse a falar do perspectivismo
ameríndio ?do outro lado?. Ao mesmo tempo em que estivesse firmemente fincado no
pensamento ?ocidental?, apoiado em Lévi-Strauss, Deleuze e muitos outros, esse
índio poderia também falar como índio. Se o porte da obra de Viveiros
de Castro não é pequeno, consideremos o de um trabalho que combinasse todas as
perspectivas do perspectivismo, com o perdão do jogo de palavras. Vejamos como
isso se dá no caso da obra de Idries Shah.

Em primeiro lugar, Idries Shah, que é um sufi que viveu na Inglaterra, tece
sua obra a partir de um complexo embricado entre o sufismo e o pensamento
ocidental. Evitando referir-se a qualquer terminologia acadêmica, seja
filosófica, política ou científica, ele prefere recorrer a alguns elementos da
psicologia cognitivista, sobretudo aqueles mais próximos da experiência
cotidiana. Com esse recurso, o leitor de Idries Shah não precisa ser versado em
nenhum conhecimento prévio nem passar por nenhum conjunto complexo de
referências. No entanto, ao utilizar-se de uma terminologia psicológica
razoavelmente simples, Idries Shah opera, na realidade, com aquilo que
poderíamos chamar, talvez, de modelos mentais propriamente ocidentais. Com isso,
a experiência da leitura passa a ser, no mínimo, curiosa: o texto é aberto e
hermético ao mesmo tempo, exigindo um processo de familiarização com as
abordagens que partem de referências conhecidas para aludir a uma tecnologia de
aproximação da realidade muito diferente daquela a que estamos habituados.
Lembrando um dos textos de Doris Lessing, ela mesma uma aprendiz de Idries Shah:
?A primeira vez que li um livro sufi foi como se me fizessem descobrir o fundo
de meu pensamento e de meu coração, a melhor parte de mim mesma?.

DESMONTANDO HÁBITOS

Esta é, a bem da verdade, uma das especialidades do sufismo. Não se trata
aqui de uma inovação de Shah. Concebendo-se como um saber ancorado na fórmula
aparentemente simples ?tempo, lugar e pessoas?, o sufismo está em constante
transformação porque o homem está em constante mudança. A interessantíssima
articulação, portanto, entre ortodoxia e inovação é uma das maiores riquezas e,
certamente, um dos aspectos de mais difícil compreensão do sufismo.

Em segundo lugar, se tomado apenas
em sua vertente histórica, o sufismo tem pelo menos 1.300 anos e conta com
centenas de grandes autores. Como trazer para hoje todo esse conhecimento sem
vulgarizá-lo, sem concessões ou distorções?

Um autor importante como Ibn
?Arabî, considerado entre os sufis como al-shayh al-akbar (o sábio por
excelência), que viveu no século XIII, foi ?revificado? em operações diversas
como, por exemplo, no século XIX, pela obra do Emir Abd al-Qadir, grande herói
da Argélia, e no século XX, pelo trabalho de outro importante sufi
contemporâneo, Michel Chodkiewicz. O trabalho de Idries Shah, no entanto, não se
restringe a um período da História nem a um único autor sufi. Ele, de certo
modo, nos dá a conhecer o sufismo por completo.

Um aspecto de sua obra que tem sido mais sistematicamente explorado,
sobretudo entre os educadores, reside no uso dos contos das tradições orais e
escritas dos sufis. Ao explicar, de incontáveis modos diferentes, como os contos
são portadores de um conhecimento que só pode ser transmitido por meio de tais
estruturas narrativas, que combinam humor, entretenimento e, por assim dizer,
uma desmontagem de certos hábitos mentais cristalizados, nosso autor abre uma
perspectiva de grande valor para a pedagogia atual e um enriquecimento
inestimável para a discussão, hoje fervilhante, sobre novos fundamentos para a
educação como um todo.

Como exemplo, temos a sua
compilação e adaptação dos contos de Nasrudin ? esse incrível personagem que
povoa o imaginário de todo o Oriente Médio. Ao mesmo tempo sábio e idiota,
Nasrudin é um precursor do bobo da corte e, como este, de bobo não tem nada:
utiliza comportamentos incomuns para não apenas aludir teoricamente a outras
possibilidades de aproximação da realidade, como também para efetivamente criar
no leitor a experiência dessas outras aberturas.

* Bia Machado é pós-doutora pela Universidade de São Paulo com pesquisas em Filosofia da Educação