Esportes

Vila Olímpica redefine fronteiras e cria novo 'mapa-múndi' no Rio

201607221729430177.jpgNão terá as consequências de um tratado como Tordesilhas, que dividiu o Novo
Mundo entre Espanha e Portugal, no final do século XV. Mas no microplaneta da
Vila Olímpica, que se abre hoje a atletas de 205 países que disputarão os Jogos
do Rio, uma geografia particular estará estabelecida. Na partilha dos 200 mil
metros quadrados, com sete condomínios e 31 prédios de 17 andares, inimigos
históricos aceitaram uma ?trégua? para conviver em espaços comuns. As relações
de força e tamanho de cada nação ganharam novas dimensões, e fronteiras e
continentes acabaram reconfigurados: o Brasil, com a segunda maior ?população?
de atletas, faz fronteira com Holanda e México, enquanto a Austrália, habituada
ao isolamento entre os oceanos Pacífico e Índico, dividirá limites com Argentina
e Alemanha.

Para demarcar esses território, a lógica pouco lembrou a da geopolítica
mundial. Em vez de guerras, acordos diplomáticos e disputas econômicas, étnicas
e religiosas, na babel erguida na Barra, os critérios seguem, em muitos casos,
motivos bem mais prosaicos.

? É um grande quebra-cabeça. Sabemos, por exemplo, que alguns não gostam de
ficar perto dos latinos, que gostam de fazer barulho e de ouvir música alta.
Perguntamos aos países se tinham preferência de compartilhar ou não o prédio com
algum outro. Podia já ter havido problema em edições anteriores dos Jogos ?
conta o argentino Mario Cilenti, diretor de Vila, a quem coube o papel de
gerenciar as negociações que separaram as nações esportivas
? As grandes
questões mundiais contam pouco. Mas, é claro, na hora em que alocamos as
delegações, pensamos: ?Bom, melhor não deixar este aqui neste prédio, melhor
não?. É mais uma busca por prevenir possíveis problemas do que propriamente um
veto vindo dos países.

201607211405298034.jpgAnfitrião, o Brasil teve o privilégio de ser o primeiro a escolher o edifício
que ocuparia. Optou pelo mais isolado: ao sul da vila, a casa brasileira é a
mais distante da entrada, dos restaurantes e da zona de convivência, numa opção
do Comitê Olímpico do Brasil (COB) a fim de manter a privacidade e a
concentração dos atletas.

Em seguida, valeu a lei da maioria: as 10 maiores delegações selecionaram
seus prédios, sucedidas pelas 50 seguintes e assim por diante. Na distribuição,
foram reservados lugares, na mesma vila, para israelenses e palestinos, ou para
sauditas e iranianos (que chegaram a romper relações diplomáticas este ano).

As chaves dos apartamentos começaram a ser entregues aos chefes de missão na
segunda-feira passada. Na tarde da última sexta-feira, 50 delegações já tinham
feito check-in na Barra. As menores ainda poderão ser remanejadas para facilitar
o ?encaixe? das duas centenas de países nas três dezenas de prédios. Apesar
disso, antes mesmo da chegada dos atletas, os edifícios já ganhavam adornos de
símbolos nacionais: marcando o novo e provisório território de cada um, varandas
foram ?vestidas? com bandeiras e faixas.

POTÊNCIAS E PERIFERIAS

O prédio brasileiro era o primeiro a ser avistado por quem olhava a partir
das avenidas Salvador Allende e das Américas: além da faixa do Time Brasil,
adesivos nas sacadas formavam uma Bandeira Nacional estilizada. O edifício da
França, numa área central da vila, já ostentava ?bleu, blanc, rouge? de cima a
baixo. Os australianos capricharam em faixas com o nome do país, assim como
Canadá, Grã-Bretanha, Ucrânia, Suécia, Argentina, Alemanha e México já
enfeitavam as janelas.

201607221729500178.jpgHouve ainda os mais criativos: o time da Eslovênia, nação que integrava a
antiga Iugoslávia, expôs a mensagem, em inglês, ?I feel Slovenia? (Eu sinto
Eslovênia), com as letras do país que formam ?love? destacadas. Seu prédio, ao
lado do francês, fica de frente para a zona internacional, e pode ser um dos
mais afetados pelo barulho.

Esta distribuição geográfica da vila coincide, em alguns casos, com o que
acontece na ?vida real” do globo. Delegações de países periféricos que orbitam
vizinhos maiores, pediram para ficar próximas a fim de se apoiar na estrutura de
grandes potências. É o caso das nações da Oceania, que conta com dois principais
times olímpicos: Austrália e Nova Zelândia. Outras ilhas que compõem o
continente, como Vanuatu, Papua Nova Guiné e Fiji, entre outras, estarão a
apenas alguns andares de distância.

? Estamos com a maior parte dos andares de um dos edifícios, compartilhado
com nossos amigos da Oceania. Mas alguns dos nossos atletas, como os do remo,
vela e triatlo, ficarão em Copacabana, mais perto das arenas de competição ?
conta Mike Tancred, diretor de Comunicações do Comitê Olímpico Australiano
(AOC), uma das delegações mais populosas dos Jogos (são 410 atletas).

O ranking mundial de densidade demográfica, aliás, é outro número subvertido
pela Olimpíada. O planeta Vila será composto por cerca de 10.500 atletas ? o
número total de vagas nos 3.604 apartamentos pode chegar a 17.950, incluindo
comissões técnicas. Os Estados Unidos têm 550 esportistas classificados e, ainda
que nem todos fiquem no complexo da Barra, serão a nação mais populosa, título
pertencente à China na realidade mundial. O país de 1,3 bilhão de habitantes
estará representado por 416 esportistas. Enquanto seu vizinho ultrapopuloso, a
Índia, o outro que também supera a barreira do bilhão de pessoas, vem ao Rio com
apenas 90 atletas.

Outro gigante, a Rússia terá sua acusação de doping estatal julgada hoje pelo
Comitê Olímpico Internacional (COI) e está ameaçada de sumir do mapa olímpico.
No caminho inverso, uma nação inexistente estará nos Jogos: a dos refugiados,
com 10 atletas obrigados a fugir de seus países.

ESCAMBO OLÍMPICO

É na Zona Internacional em que todos eles, seja de nações vizinhas,
distantes, amigas ou inimigas, vão se encontrar com frequência. É uma área de
convivência com banco, casa de câmbio, café, lavanderia, salão de beleza e dois
espaços de lazer: um palco com telão, onde haverá apresentações e serão exibidas
as competições, e uma reprodução das praias cariocas, com areia, cadeiras e
barracas.

É ali que devem se dar as conversas entre ídolos ou quase anônimos de
diferentes países. É onde, imagina-se, será dado o pontapé inicial de encontros
que podem ser a fagulha para o consumo do estoque recorde de preservativos
oferecido pela organização em 2016. E, mantida a tradição de Jogos anteriores,
quanto mais se aproximar o fim da Olimpíada, deverá se transformar num
verdadeiro mercado, mas na base do escambo: atletas trocam entre si todo tipo de
acessórios e elementos que sirvam de recordação, de fotos, chaveiros, vídeos e
camisas aos cobiçados agasalhos de delegação, considerados um must do
uniforme olímpico.

? É um evento com um simbolismo de aproximação dos povos e da promoção do
diálogo. Essa é a mensagem olímpica ? diz Oliver Stuenkel, professor de relações
internacionais da FGV-SP.