Cotidiano

Vida marinha resiste na Baía de Guanabara

A alguns metros do vaivém da multidão de todo dia, a Praça XV esconde segredos. As águas poluídas que quase ninguém contempla abrigam borboletas coloridas. Não as que voam. Mas as que nadam com a graça dos pássaros. São raias-borboleta. Dezenas delas foram flagradas pelo fotógrafo e cinegrafista Ricardo Gomes. As imagens revelam uma biodiversidade na Baía de Guanabara que a maioria das pessoas julga perdida.

Das trevas da sujeira, emerge uma boa notícia num estado em calamidade pública. As imagens fazem parte do documentário ?Baía urbana?, todo filmado por Gomes e com pré-lançamento no fim deste mês no Museu do Amanhã. Batizada pelo formato de suas nadadeiras, a raia-borboleta (Gymmura altavela) está classificada como criticamente ameaçada de extinção, o que a torna uma espécie de mico-leão-dourado dos mares. Não é o tipo de animal que se espera encontrar numa das baías mais poluídas do planeta. Mas, no fim de abril passado, Gomes se deparou com as raias ? vários grupos delas ? nas águas logo junto ao asfalto. O ponto exato ele não revela para não entregar os peixes a pescadores mal intencionados.

? A água estava transparente. Um pescador me contou que tinha visto uma raia. Caí no mar depois das 21h, com a maré cheia. A água limpa veio com a mesma ressaca que derrubou a ciclovia da Niemeyer. Essas ressacas são frequentes. O que não é muito comum é ver um sujeito de sunga à noite mergulhar na Praça XV ? afirma o documentarista.

O mergulho com raias no Centro é parte de uma série de 50 realizados para o documentário, com estreia prevista para novembro. Realizado com apoio da ONU e da OceanPact, uma empresa que combate danos de desastres no mar, ?Baía urbana? mostra flagrantes de diversidade. Será exibido pela ONU em 166 países, como alerta e mensagem de esperança.

Ocultas sob a escuridão da sujeira vivem, por exemplo, moreias-verdes e amarelas. As primeiras foram filmadas por Gomes no costão do Pão de Açúcar. Outras moram em tocas nas pedras da Enseada de Botafogo. Ambas as espécies se alimentam de filhotes de outros peixes.

Nas águas da Urca, nadam também parús (Pomacanthus paru), um tipo do belo peixe-anjo, e tartarugas-verdes (Chelonia midas). As raias-borboleta, provavelmente, habitam a Guanabara quando jovens. Especialista em elasmobrânquios ? classificação de peixes que reúne raias e tubarões ?, a bióloga Fernanda Gonçalves explica que há sete espécies de raias no estuário. Mas quase sempre elas ficam próximas à entrada da baía, o canal que começa entre o Pão de Açúcar e a Fortaleza de Santa Cruz (Niterói).

? A raia-borboleta é a única que parece gostar da região do fundo, perto de Magé, e permanece lá quando jovem. Essas raias comem corvina, um peixe extremamente comum na baía. Mas não tínhamos ainda registros na Praça XV. Talvez essas raias também se reproduzam na baía, não sabemos. Nosso sonho era monitorá-las com satélite, mas não há dinheiro ? observa Fernanda, que desenvolve uma tese sobre raias no Laboratório de Biologia e Tecnologia Pesqueira da UFRJ.

A vida é guerreira na Guanabara. As raias-borboleta, por exemplo, estão contaminadas por organoclorados e metais pesados vindos com o esgoto, frisa o chefe do laboratório, o professor da UFRJ Marcelo Vianna, orientador da tese de Fernanda. Ainda assim, as raias e centenas de outras espécies de animais marinhos persistem. Por quanto tempo, não se sabe.

? A luta continua sob a sujeira. É isso que mostro no filme. Há motivos de sobra para preservar. Não precisamos trazer a vida de volta. Ela já está lá, mas agoniza e diminui a cada dia. Nossa obrigação é despoluir a baía, deixá-la respirar livre da imundície do esgoto e do lixo. Imagine quantas espécies a mais não teríamos? Resgataríamos um paraíso ? salienta Gomes, que mergulha desde 1991 na baía.

Vianna diz que a Baía de Guanabara continua a ser o estuário do Brasil com maior riqueza de espécies. Só de peixes são mais de 200, segundo ele.

Sobre a biodiversidade da baía, o professor Marcelo Vianna recorda que o camarão-rosa cresce nessas águas:

? Sabe aquele camarão rosa graúdo que só dá para usar como enfeite de prato de tão caro? É pescado em águas abertas. Mas esse é o mesmo animal que se cria na baía, conhecido como camarão-lixo quando filhote. A baía é um berçário, apesar das adversidades. Ainda há tempo para salvá-la, antes que não resista mais ? adverte.

A baía tem zonas mortas, cujo fundo é literalmente coberto de plástico. Não há mais areia, só plástico. Devido ao volume de poluição e às correntes marinhas, essas zonas estão em sua maioria perto de São Gonçalo e no norte de Niterói, diz Vianna. Nessas áreas, a destruição de habitats e a poluição são extremas. Mas, por enquanto, fora das zonas mortas, peixes nobres como as garoupas e os linguados não são difíceis de encontrar, principalmente na entrada e no meio da baía. Já polvos são muito comuns em toda parte. Corvinas, abundantes. E mesmo espécies como o peixe-cofre (Rhinesomus bicaudalis) nadam na Urca. Conhecido também como peixe-vaca devido aos ossos na cabeça que se assemelham a chifrinhos, ele não se abalou com a presença de Gomes e seu equipamento. Biólogo marinho de formação, Gomes, de 48 anos, associou a paixão pela natureza à fotografia pela primeira vez em ?Mar urbano?, de 2014, documentário sobre a vida além das ondas em Copacabana e Ipanema. Em seu novo documentário, ?Baía urbana?, para captar as imagens ele precisou colocar o amor à prova. Usou 40 quilos de equipamento, incluindo iluminação de LED industrial profissional, que transforma noite em dia.

Gomes prefere mergulhar quase sempre à noite, quando muitas espécies estão mais ativas e é possível controlar melhor as cores. É o caso de estrelas-do-mar filmadas em Botafogo, não muito longe da areia da praia.

O mergulho solitário em busca das cores e formas dos habitantes da baía rendeu ao documentarista momentos que considera transcendentais:

? O que dizer de ficar ajoelhado no fundo, a 12 metros de profundidade, perto de Botafogo, e ser cercado por um cardume de lulas? Perto dali, o Aterro, os carros, o barulho e a confusão da cidade. E eu lá num outro mundo. É mágico.

A essência que alimenta essa magia vem de longe. Chega do alto-mar, das profundezas do Atlântico. A baía se renova das águas oceânicas frias, que chegam trazidas pelas correntes do sul do continente.

? É a entrada da água fria do mar profundo que traz espécies, muitas formas de vida. Peixes, crustáceos, moluscos, uma infinidade de animais. Sem essa renovação, a baía já teria morrido ? explica o professor Vianna.

Na escuridão da noite e na cortina de sujeira de poluição, Gomes só teme uma coisa. E não é tubarão.

? Monstro na baía é bactéria trazida pelo esgoto. Há incontáveis espécies que causam doenças. Isso sim dá medo: lixo. Tubarão é privilégio. Mas eles estão cada vez mais raros ? lamenta.

Cada mergulho, uma história. A última, semana retrasada, pouco antes da meia-noite de quarta-feira, com o termômetro na casa dos 15 graus Celsius, Gomes mergulhou na altura do costão do Pão de Açúcar. A poucos metros de profundidade, a vida fervilhava na Baía de Guanabara, com milhões de larvas de peixe trazidas pela maré. E a oito metros sob a linha d?água, o prêmio maior, uma sépia ou siba. É parente das lulas, mais difícil de flagrar e inimaginável nas poluídas águas da Guanabara. Gomes acompanhou a siba até vê-la desaparecer na escuridão.

? Foi a primeira que vi em 30 anos no mar do Rio. A última foi no Arpoador. Tinha uns 20 centímetros e consegui acompanhá-la por um tempo ? conta ele, que fechou com chave de ouro a filmagem do documentário.