Cotidiano

Vicente Sánchez-Biosca, professor: 'Há uma suspeita generalizada em relação à imagem'

“Tenho 59 anos. Sou historiador de imagens e pesquisador de história visual. Leciono Comunicação Audiovisual na Universidade de Valencia, na Espanha. Costumo dizer que uma imagem desperta mil perguntas. Meu trabalho é tentar compreender, resumir e responder a algumas dessas perguntas.”

Conte algo que não sei.

Há uma suspeita generalizada em relação à imagem. Temos olhares profissionais e olhares que, embora profissionais, simulam ser amadores, capturados num golpe de sorte, para que pareçam mais verídicos. E a capacidade de o público distinguir entre essas imagens é insuficiente, o que gera a desconfiança.

Qual a reação possível?

É necessário reconstruir o papel da câmera em relação ao fato que retrata. Um exemplo foram as imagens do assassinato do jornalista americano James Foley pelo Estado Islâmico, em 2014. O jornalista dirige algumas palavras ao governo Obama e, aparentemente, é degolado. Qual o papel da câmera, imóvel diante dos acontecimentos? É um instrumento de uma violência obscena. Nós, historiadores, temos de nos perguntar qual a qualidade ética do olhar e como essa imagem é recebida pelo espectador.

Como ser documentarista na era da “pós-verdade”?

Documentos revelam algo que aconteceu no passado, mas “verdade” talvez não seja a palavra mais indicada para se referir a isso. Interessa-me reconstruir a atmosfera, o clima emocional, histórico, documental e humano em que certos acontecimentos se desenrolaram. A imagem fotográfica ou cinematográfica diz algo que não está dito em nenhum outro documento.

A imagem pode substituir a memória viva?

Há um divórcio entre as imagens de arquivo fontes e a memória viva, os testemunhos. Tanto daqueles que viveram os fatos, quanto memórias transmitidas a segundas ou terceiras gerações. Esse divórcio faz com que o trabalho consista mais em reconhecer que a imagem é uma memória cultural. Não é só um acontecimento compartilhado, mas também se converte em memória, que, por sua vez gera novas memórias.

Isso se reflete na produção das imagens?

A memória visual dos conflitos trabalha com reativação. Os fotógrafos cobriam a Guerra Civil espanhola (1936-1939), tinham em mente o que havia sido a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Na Segunda Guerra (1939-1945), a referência já era a guerra civil espanhola. Nos novos conflitos há uma negociação entre aquilo já existia como referência iconográfica e aquilo que é totalmente novo. As imagens são uma espécie de espelho retrovisor pelo qual se olha o passado para construir o presente, reconfigurando-se para criar imagens novas.

Hoje não há uma produção maior de imagens?

Convivemos com uma contradição. Uma capacidade imensa de produzir imagens e, num momento posterior, uma censura. Parece que as imagens estão filtradas. Na cobertura de guerra, há drones e fotógrafos e cinegrafistas no meio das tropas no Afeganistão e no Iraque. Com uma câmera no capacete, podem filmar qualquer coisa. Mas, curiosamente, as imagens que circulam, que se tornam dignas de representar o acontecimento parecem cada vez mais reduzidas.

Há um controle governamental mais rígido?

Esse controle se organiza em torno de experiências anteriores. Por exemplo, na primeira Guerra do Golfo (1991), os Estados Unidos tinham como referência o conflito do Vietnã (1955-1975), que enfrentou oposição dentro do país por conta da difusão de imagens pela imprensa. A primeira Guerra do Golfo praticamente só tem imagens aéreas, enquanto a segunda (2003-2011) foi mais focada no protagonismo dos soldados, sempre de forma muito controlada. Daí o vazamento das imagens de tortura em Abu Ghraib (prisão militar no Iraque), em 2004, ter mobilizado toda a imprensa mundial, em particular a americana. Havia imagens de Abu Ghraib, mas eram filtradas, sem tortura.

E como o Estado Islâmico se encaixa nisso?

O EI tem uma política visual que se organiza de maneira sistemática, usando as redes sociais. Há toda uma coreografia nova, na qual as execuções e demais violências corporais são apresentadas de forma apavorante para a opinião pública ocidental, mas que, ao mesmo tempo, suscita uma emoção que promove a atração de novos combatentes. Os países que combatem o EI precisam planejar o que fazer com as redes sociais.

Nós ainda nos escandalizamos com a violência?

A escritora americana Susan Sontag (1933-2004) contava que, quando viu as primeiras fotografias (do campo de extermínio nazista) de Bergen-Belsen, teve uma sensação de paralisia. O que via não lhe dava conhecimento, não a protegia contra o que estava vendo nem lhe dava elemento intelectual ou narrativo para entender o que estava vendo. Ela estava desprotegida diante daquelas imagens. A “cotidianização” da violência através dos meios de comunicação leva implícita essa ideia de que ver a violência não significa necessariamente entendê-la. E, ao mesmo tempo, nos coloca diante de um regime visual que nos anestesia.

Os arquivos digitais mudam sua forma de trabalhar?

Completamente. A imagem digital e a digitalização de imagens antigas têm vantagens enormes, mas às vezes nos faz perder de vista que o contato material tangível com a origem tem muita informação. E nós a perdemos se só trabalhamos com material digital.