Cotidiano

Um herói que não morreu

2014 775245806-2014 775065801-2014121014130.jpg_20141210.jpg_20141211.jpg Ulysses Guimarães foi um herói do Brasil. Ele tinha uma capacidade única de unir, somar. Apesar do sonho de ser um dia presidente da República, conteve a ambição e cultivou a paciência para comandar a oposição e enfrentar com firmeza o mais longo regime de força da História brasileira.

Com Ulysses, o Brasil viveu o seu grande momento de restauração democrática.

Criado pela imposição do AI-2 de 1965, o MDB precisou de um empurrão do regime militar para nascer. O senador Daniel Krieger, por ordem do marechal Castelo Branco, rejeitou adesões na Arena para vitaminar o MDB, alegando as divergências regionais entre caciques da UDN e PSD, todos com alma governista. Por isso, senadores pessedistas, que tinham mais ódio aos udenistas do que à oposição, acabaram docemente constrangidos a se filiarem ao MDB.

Assim, o partido nasceu com 21 senadores, em 1966. Na eleição seguinte, em 1970, já sob o governo Médici, o mais duro da ditadura, o MDB definhou para sete senadores. Na Câmara, a bancada de 140 deputados minguou para 87. A oposição sofria o arbítrio das cassações, esmagada pela campanha do voto em branco, pela desilusão da juventude, pela brutalidade da política. O desencanto abatia a todos.

Menos ao dr. Ulysses.

Alentados por sua obstinação e liderança, reuniram-se em torno de Ulysses todos os que repudiavam a violência do regime. Não se falava em partido, mas em uma frente, ampla e generosa, que abrigaria todos os sentimentos e ressentimentos, todas as posições e oposições, unidas em torno de cinco ideias mágicas que nos agregavam e não nos dividiam: eleições diretas, anistia, fim da tortura, liberdade de expressão e Constituinte.

Quem concordasse com isso, entrava. Ninguém perguntava se eram comunistas, socialistas, liberais, trabalhistas, oposicionistas, dissidentes do regime militar.

Bastava concordar com aqueles cinco princípios e o MDB os recebia. Quem não concordava, preferindo a luta armada, tomava outro caminho. E assim a frente virou um partido, cresceu, convenceu e venceu a ditadura. Sob a liderança inspiradora do dr. Ulysses.

A obsessão de Ulysses era uma e inarredável: derrubar o regime militar sem violência e fazer a Constituinte sem subserviência. Parecia um delírio. Todos estavam ao lado dos militares e da ditadura: a burguesia, a Igreja, a grande imprensa. Nós só tínhamos o povo ? e o dr. Ulysses.

Ulysses pensou no povo, e não nele, quando deixou de brigar pela Presidência na tensa madrugada de 14 de março de 1985, na antessala da UTI do Hospital de Base, em Brasília, quando Tancredo Neves começou o seu calvário de sete cirurgias que o levaram à morte, em 21 de abril.

Ali, de repente, apareceu Leônidas Pires Gonçalves, com a toga de jurista sobre a túnica de general, para sacar da Constituição e dizer que, na falta de Tancredo, quem deveria assumir a Presidência era o vice José Sarney, não Ulysses, o presidente da Câmara. Para minha decepção, Ulysses não reagiu à carga do general.

Depois, cobrei dele o recuo, e Ulysses argumentou:

? Pedro, todo o esquema de segurança da posse foi cuidadosamente planejado, e quem comanda tudo é o Leônidas. Reagir ao general seria uma loucura! Não brigar, ali, foi a melhor maneira de pacificar o país.

O guerreiro e pacificador Ulysses nos deixou, de repente, em outubro de 1992. Desapareceu sem deixar pistas no helicóptero que afundou nas águas de Angra dos Reis. Todos os quatro corpos foram resgatados. Só Ulysses nunca foi encontrado.

Um dia, fui até Angra. Conversando com alguns pescadores do lugar, me contaram que, em certas madrugadas, eles avistam o vulto de um homem alto, magro, que parece lhes abanar de longe.

Acho que o Ulysses que sumiu no mar não morreu. Imagino até que ele não queria ser enterrado, vendo o que fizeram com o seu MDB, com o nosso Brasil.

Ulysses, que falta você nos faz!

Saudades, companheiro!

Pedro Simon foi deputado, senador, ministro e governador do RS, sempre pelo PMDB