Cotidiano

Talento niteroiense de sobra em Cannes

Nem a pequena atriz Maria Victórya, nem seus pais e nem mesmo os realizadores do curta-metragem “Os olhos de Cecília” tinham noção da repercussão que a escolha do filme para integrar a programação da mostra Short Film Corner, do Festival de Cannes, teria. A produção conta a história de uma menina humilde, cega de um olho, que sofre bullying na escola, e, mesmo assim, não deixa de encarar a vida com otimismo. Para o produtor Eric Platenik e o diretor de fotografia João Rocha, que curiosamente mora no mesmo bairro que a menina, a surpresa veio porque o filme foi selecionado para uma mostra secundária, que acontece até domingo, e não para a Seleção Oficial, na qual dez curtas de todo o mundo competem pelo prêmio de melhor.

— Como criadores, sempre miramos o competitivo. Quando saiu o anúncio, eu e o Victor, o diretor, achamos legal a oportunidade, e só. Quando os outros membros da produção viram, rolou uma empolgação geral. Aí, vimos que não havíamos dado a devida importância — diz Platenik.

— A experiência aqui é muito motivadora, de continuar a fazer filmes. Estou em contato com produtores de todo o mundo, inclusive compradores de curtas e programadores de festivais — conta, por e-mail, o diretor Victor Fiuza, que acompanha o evento na Riviera Francesa.

Para os pais de Maria Victórya, o professor universitário Maurício de Sant’Anna e a enfermeira Carolina Manzi, alheios ao mundo do cinema, a surpresa veio simplesmente por eles não terem muita ideia do que, neste mundo, significava a palavra Cannes.

— Vimos várias pessoas compartilhando no Facebook, dando-nos os parabéns, e eu pensei: “O que é Cannes?”. Perguntei à professora de canto dela: “Cannes não é um festival?”. Aí, ela me explicou direito o que era — conta a mãe.

Viver a protagonista Cecília foi a primeira experiência de Maria Victórya no cinema. Antes, a atriz de 11 anos que mora em Santa Rosa, trabalhou em publicidade.

— Eu me diverti muito. A gente brincava, gravava e voltava a brincar. E tiveram que colar o meu olho, né? Às vezes, ficava ardendo, mas eu não me importava. Foi legal também porque as pessoas não me reconheciam, nem mesmo minha irmã. É que eu mudava bastante; passavam maquiagem, e eu tinha que bagunçar o cabelo e trocar o estilo de roupa, além do olho — conta a menina, que depois do filme emendou outros trabalhos no cinema, como um papel na cinebiografia de Erasmo Carlos, “Minha fama de mau”, além de um outro curta com Fiuza, Platenik e Rocha, “As asas de Cândido Gabriel e seu amigo Tiago”.

— Você tem que saber até onde pode levar sua técnica. Será que eu posso engessar um pouquinho o ator para garantir o foco? Por causa da luz, posso colocá-lo em um espaço mais restrito? E a Maria, mesmo com a maquiagem no olho, topava e fazia tudo de uma forma que muito ator veterano não faz — exalta Rocha.

O filme, também escrito por Fiuza, foi inspirado na história de uma tia dele, que também só enxerga com um dos olhos.

— A motivação inicial veio com a experiência dela, que deixou o colégio. Queria contar uma história em que ela continuasse a estudar — conta.

A trajetória de Maria Victórya também se confunde com as da personagem e da tia de Fiuza.

— Eu mudei de escola por causa de bullying. Por causa da minha cor. As mães não gostavam de mim, e as crianças não me convidavam para as festas. Aí, eu fiquei um ano na psicóloga — conta ela.

— Mas é bom ressaltar que o bullying nunca foi o tema central do filme. É sobre a Cecília, e é até uma ironia ela ser cega de um olho. O olho que é cego lançaria um olhar diferente sobre o mundo. Apesar de tudo, ela quer continuar na escola, e perdoa os que de alguma forma lhe fazem mal — finaliza Platenik.