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Spotify espera substituir a literatura no futuro próximo?

Plataforma outrora apenas musical começa a expandir seus tentáculos para podcasts de jornais, revistas e leituras de obras literárias

Spotify espera substituir a literatura no futuro próximo?

O escritor argentino Hernán Casciari admitiu recentemente que está cada vez mais difícil para ele ter tempo de sentar em sua mesa de trabalho e ler ou escrever qualquer coisa. Ao contrário de falar e escutar, que “não exige esforço”. Foi por isso que, nos últimos tempos, ele tomou uma decisão radical: lê em voz alta seus artigos, crônicas e contos. Também o faz em teatros, na televisão, na rádio e em gravações para podcasts e para o Spotify.

“Graças a essas plataformas, meus leitores se multiplicaram. Quer dizer, meus ouvintes”, disse ao jornal estadunidense New York Times. “Isso acontece porque depois de me escutar, eles compram meus livros, vão me assistir quando estou em suas cidades e buscam outras vias de chegar a mim. Assim, minha comunidade [de leitores] não para de se expandir”, completou.

Casciari é um dos poucos escritores contemporâneos que já aceitou que a profissão paga melhor por experiências ao vivo, como palestras e eventos, do que pela venda dos livros, “muito porque a indústria editorial segue nos roubando”, vociferou. A revista literária Orsai, da qual é editor, segue a tendência internacional de permitir que os usuários escolham entre ler ou escutar seus textos.

A experiência no Spotify é “fantástica”, segundo Casciari, porque tem “força viral”. Sua página no aplicativo originalmente de músicas compartilhadas já tem oito mil ouvintes mensais, e seu texto “Messi es un perro” foi escutado 140 mil vezes desde que saiu em formato de áudio. Seu hit, com o dobro de reproduções, no entanto, é “La edad de los países”, que também tem muitas visualizações em sua conta no Youtube.

A iniciativa do escritor argentino coincidiu com o lançamento de podcasts originais do Spotify, num projeto que a empresa sueca colocou em prática no ano passado. Em junho de 2018, a plataforma lançou sua primeira produção original na América Latina, Equipaje de Mano, que narrou a Copa do Mundo da Rússia a partir das experiências de torcedores argentinos no país. Depois dele, surgiram vários outros programas de atualidades e documentários no Brasil e no México, com parcerias com meios como a Folha de S. Paulo (Café da Manhã), a Rolling Stone mexicana (Tlatelolco: la plaza em movimiento) e a Vice do México (El Chapo: el jefe y su juicio).

O salto para a ficção foi duplo: no final de 2018, foi publicada a primeira temporada da série Ven con un cuento, que adapta em cada capítulo uma fábula infantil com narrações de artistas reconhecidos pelo público de língua espanhola. Em março, foi publicada a primeira temporada de Tripulación Atucha, uma comédia argentina de ficção científica.

Os uruguaios Mario Benedetti e Eduardo Galeano, o argentino Jorge Luis Borges, o peruano César Vallejo e o chileno Pablo Neruda também estão no Spotify, ao lado de uma multidão de audiolivros e podcasts que inundaram a plataforma — um processo de expansão polêmico e crucial para o futuro da literatura.

A professora Emma Rodero, da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, na Espanha, e especialista em discursos orais, diz que o êxito dos audiolivro é semelhante ao da leitura de um livro de papel: “Ele se dá tanto pela capacidade de criar imagens mentais no ouvinte, estimulando a atividade cognitiva, como por seu potencial para provocar uma forte resposta emocional e fisiológica”, disse ao jornal El País.

O fenômeno convida a se perguntar se o futuro da literatura não se encontrará no seu passado remoto: a oralidade. Já não como uma atividade performática e compartilhada — ao redor de uma fogueira, na praça pública ou reunido na sala de casa, com a família, colado ao rádio –, mas como uma prática individual, por meio dos fones de ouvido.

Os investimentos em tecnologias do tipo podem dar uma pista sobre o futuro: nos últimos anos, sistemas de reconhecimento de voz como a Siri, da Apple, receberam milhões de dólares para se aperfeiçoar. Plataformas como a Storytel e o SoundCloud se tornaram mais poderosas enquanto a Amazon de desdobrava para construir a Audible e o YouTube projetava o sistema de tradução simultânea de seus vídeos. De fato, há um grande interesse corporativo em potencializar a circulação da voz pela Internet.

“Após anos de familiaridade com o conceito ‘audiovisual’, que parecia implicar uma fusão definitiva, a visão e o ouvido voltaram a encontrar espaços exclusivos e divergentes”, diz a socióloga Clara Schneider, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que pesquisa o uso de fones de ouvido nas grandes cidades brasileiras como a nova forma de solidão moderna. “Contra todo prognóstico apocalíptico, seguimos lendo jornais, revistas e livros em papel, assim como a fotografia se desenvolve como linguagem de expressão em aplicativos como o Flickr e o Instagram, mas o áudio se adaptou ao novo ecossistema midiático e cresceu com ele”, completa.

Seja como for, a situação contemporânea lembra a do protagonista do livro 1984, do escritor britânico George Orwell. Não acostumado a escrever a mão, ele explicava que isso aconteceu-lhe porque “o normal era ditar tudo o que se fala-escreve”. O romance, como outra profecia, também falava sobre uma língua mais simples, que podia reduzir o alcance do pensamento — como é o projeto da neo língua atualmente (uma versão simplificada do inglês).