Cotidiano

Sob aplausos e ao som de 'O trenzinho caipira', Ferreira Gullar é sepultado no Rio

RIO ? Na tarde desta segunda-feira, o poeta, ensaísta, crítico de arte, dramaturgo, biógrafo, tradutor e memorialista Ferreira Gullar, morto na manhã deste domingo, aos 76 anos, foi enterrado no cemitério São João Batista, na Zona Sul do Rio. O corpo do maranhense foi sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, ao lado do poeta e diplomata pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Links Ferreira Gullar Repercussão

A despedida final a Gullar foi marcada por fortes aplausos dos presentes, que entoaram ainda a letra escrita por ele para “O trenzinho do caipira”, composição de Heitor Villa-Lobos e parte da peça “Bachianas Brasileiras nº 2”.

As homenagens a Ferreira Gullar continuaram nesta segunda-feira. O corpo foi levado em cortejo público da Biblioteca Nacional, onde foi velado durante a noite, para a Academia Brasileira de Letras, onde chegou por volta das 11h30m.

Além da família de Gullar, estavam presentes no velório amigos e personalidades, como o poeta Armando Freitas Filho, o cantor Fagner, o jornalista Fernando Gabeira e a cantora Adriana Calcanhotto.

? Ele não se apegava ao que fazia. Tinha um espírito de moleque. Quando ligava pra ele, ele dava um ‘alo’ de dar medo. É uma grande perda para a cultura brasileira. Acho uma pena não ter mais o Gullar na TV, dando entrevistas ? disse Calcanhotto.

Armando Freitas Filho disse que começou a ler Gullar com 16 anos e até hoje, com 76, continua a ler.

? Um poeta assim não se acaba nunca. É importante o Brasil ter um poeta como ele, forte. Ele viveu o Brasil como poucos. Sobreviveu à ditadura, a 72 horas de tortura. Mas sinto que até hoje estamos vivendo as marcas de 1964 ? disse o poeta.

O cantor Fagner lembrou também o acidente com o avião da Chapecoense, lamentando a semana triste que o país enfrentou.

? A gente está na época das perdas. Falei com ele um mês atrás e ele parecia bem, animado. Há pouco tempo passei na porta dele e não quis entrar. Então quando soube da sua morte, fiquei chocado. Gullar foi um resistente, transformou todo o sofrimento em poesia. É um momento muito triste para o Brasil. O acidente com a Chapecoense, a morte de Gullar. Hoje o céu chora.

NO DOMINGO, ADEUS NA BIBLIOTECA NACIONAL

Na noite de domingo, o adeus ao poeta e imortal reuniu autoridades do governo, como o ministro da cultura Roberto Freire e o novo presidente da funarte, Stepan Nercessian, membros da Academia Brasileira de Letras, amigos e familiares.

‘Eu sou feliz. Quero morrer assim, bem, com paz. Se você me ama, me deixa morrer em paz’. Foi isso que ele me pediuPrevisto para começar às 19h, velório só teve início de fato por volta das 21h30, com a chegada do corpo. A viúva de Gullar, a também poeta Claudia Ahinsa, contou que o marido estava muito bem até pouco tempo atrás. Segundo ela, o escritor era muito ativo, e seus check-ups anuais sempre tiveram ótimos resultados, mas no último dia 9, ele foi ao hospital por estar com dificuldade de respirar.

O tratamento para o pneumotórax diagnosticado vinha dando resultados, até que uma tosse mostrou que o pulmão do poeta havia sido infectado. Ao saber da gravidade de seu estado, Ferreira Gullar reagiu dizendo que não queria ser entubado:

? “Eu sou feliz. Quero morrer assim, bem, com paz. Se você me ama, me deixa morrer em paz”. Foi isso que ele me pediu ? revelou.

Claudia disse que o marido permaneceu lúcido durante todo o período de internação, tendo inclusive escrito três crônicas na UTI. Por uma sugestão dela, Ferreira Gullar tinha começado a trabalhar em um novo livro de colagens inspirado em “Trenzinho caipira”. A música de Heitor Villa-Lobos, com letra do poeta, é o tema de abertura da novela “A lei do amor”.

POLÍTICA

Links Ferreira Gullar artigosO ministro da Cultura e ex-companheiro do antigo Partido Comunista, Roberto Freire (PPS-SP), compareceu ao velório para se despedir do amigo. Ele contou que os dois estreitaram relações durante a campanha presidencial de Freire em 1989, quando Gullar atuou como um dos interlocudores do antigo PCB com a classe artística. A política continuou sendo um ponto em comum entre os dois:

? Cada um por caminhos diversos, chegamos a uma coincidência muito grande da análise em relação ao que tinha acontecido com aquilo que nós acreditávamos ser um mundo novo, e sua derrota histórica. Coincidíamos também na análise da realidade brasileira ? disse o ministro. ? Era um intelectual com uma amplitude muito grande. O Brasil perdeu um grande homem, e eu perdi um amigo.

O presidente da ABL, Domício Proença Filho, comentou que, apesar de sua resistência a se candidatar à academia, Gullar estava muito à vontade entre os imortais. Segunda-feira, o poeta completaria seu segundo aniversário na cadeira 37.

? Ele era o “último dos moicanos” até agora, até que apareça alguém que tenha o mesmo tipo de marca. Alguns poetas vêm e marcam presença. Os grandes ícones se transformam no que chamo de “poetas-marco”: Drummond, Bandeira, Cecília, Jorge de Lima, João Cabral… ? enumerou Proença Filho, que ainda elogiou a auntenticidade e a coragem do colega ? Ele não tem problema nenhum em rever suas opiniões, assumir posições diferenciadas, e de forma corajosa. São as duas marcas que eu aprendi a admirar nele desde que nos conhecemos.

A presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Helena Severo, elogiou a trajetória do artista, a quem chamou de um “poeta maior”:

? Receber o Ferreira Gullar nesta casa é uma honra enorme. Esta casa é a casa dele, a casa dos livros e da memória nacional.