Cotidiano

Sedução do poder

Ricardo Noblat No domingo 15 de novembro de 1985, Ulysses Guimarães, 69 anos de idade, então presidente da Câmara dos Deputados e do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), reuniu um grupo de jornalistas para almoçar no Massimo, o melhor restaurante de comida italiana da capital paulista.

Estava desbragadamente feliz. Pesquisas de intenção de votos coincidiam em indicar a vitória naquele dia do PMDB na eleição para prefeito em algumas das principais cidades do país, inclusive São Paulo, onde o sociólogo Fernando Henrique Cardoso derrotaria Jânio Quadros, o ex-presidente da República que renunciara ao cargo em 1960.

Ulysses bebeu suco de tomate, logo ele que preferia poire, afamada aguardente francesa à base de pera. Na verdade, o suco fora reforçado com generosas doses de vodca. Depois de meia hora de conversa, Ulysses antecipou aos convidados a pergunta que pretenderia fazer no dia seguinte, em Brasília, ao presidente José Sarney: ?E agora, José??

Com a morte em abril daquele ano do presidente eleito, mas não empossado, Tancredo Neves, Sarney, como vice dele, o substituíra. Mas, na prática, exercia o cargo em parceria com Ulysses. Afinal, dependia do PMDB para governar. Era um estranho no ninho. Até um ano antes apoiara a ditadura militar implantada no país em 31 de março 1964.

Menos de seis horas após o almoço, Ulysses recebeu para jantar em sua casa, no bairro dos Jardins, os jornalistas Bob Fernandes, do ?Jornal do Brasil?, e Jorge Bastos Moreno, do GLOBO. E, sentado à cabeceira da mesa, ordenou à Mora, sua mulher: ?Sirva aquele magnífico vinho australiano.?

Os jornalistas se entreolharam: vinho australiano?

Ulysses permanecia feliz, apesar da vitória àquela altura de Jânio e dos maus resultados colhidos pelo PMDB em várias capitais. Ouviu, sem ligar, a advertência de Mora: ?Ulysses, contenha-se.? Concluíra, mas não disse aos dois jornalistas, que sairia da eleição mais forte do que seus concorrentes internos para disputar pelo PMDB a vaga de Sarney.

Antes que a sobremesa fosse servida, não resistiu à ironia e decretou, para contrariedade de Mora:

? Fernando Henrique foi um ótimo candidato a prefeito, ótimo mesmo. Pena que Estocolmo (capital da Suécia) seja tão longe daqui.

Políticos não resistem a roubar palavras de outros. Atribui-se a Ulysses mais célebres frases do que as que de fato ele pronunciou. Não importa.

No seu tempo, Ulysses foi o Senhor das Palavras. Valeu-se delas para se eleger deputado federal 11 vezes. Mandou por meio delas. E conduziu esgrimindo com elas.

As palavras marcaram sua vida. E, com elas, Ulysses marcou definitivamente a vida do país.

?Não se pode fazer política com o fígado, conservando o rancor e ressentimentos na geladeira.? ?Governo xique-xique, este. Não dá sombra nem encosto.? ?O bom político costuma ser mau parente.? ?Eu tenho ódio e nojo à ditadura?. ?O poder absoluto corrompe e fracassa absolutamente.? ?Quem vai à frente bebe água limpa.?

Ulysses seguiu o seu partido, à época o PSD, quando votou em Humberto de Alencar Castelo Branco, o primeiro dos cinco generais-presidentes da ditadura de 64. Foi à frente da oposição na luta contra o regime militar por longos e tenebrosos 21 anos. Tancredo quase realizou o sonho de beber a água limpa ao se eleger presidente. Ele, não.

?Sou louco pelo poder, seduzido pelo poder, é para isso que vivo?, afirmou Ulysses. certa vez. Morreu no fundo do mar sem alcançá-lo na tarde chuvosa do dia 12 de outubro de 1992.