Cotidiano

Sarau faz protesto contra fechamento da Biblioteca-Parque da Rocinha

63726877_SC Rio de Janeiro RJ 09-01-2017 - Apresentacao do sarau do coletivo Bando Cultural Fave.jpg

RIO ? ?Olha aí o herói da resistência?, saudou a escritora Raquel Oliveira, ao ver Joílson Pinheiro entrar na Pizza Lit, uma pizzaria localizada no alto da Via Ápia, principal rua da Rocinha, em uma noite no início de janeiro. Poeta, dramaturgo, romancista e operador de caixa em um restaurante da Barra da Tijuca, Joílson é um dos principais agitadores culturais da comunidade, organizador de um sarau mensal na Biblioteca Parque da Rocinha, do qual participava grande parte dos artistas locais desde 2012. Como a biblioteca está fechada desde dezembro por falta de verbas, os habitués, como Joílson, Raquel e artistas do grupo teatral Bando Cultural Favelados, decidiram transferir o evento para a pizzaria, que por uma noite se tornou um polo de resistência da cultura local. Com a ajuda de um microfone e de duas caixas de som, eles se prepararam para recitar poesias, apresentar números teatrais e, acima de tudo, fazer um barulhento protesto contra o fechamento da biblioteca.

No único ? e apertado ? canto vazio do restaurante, artistas se revezavam no microfone. Famílias ouviam atentamente nas mesas, enquanto folheavam livros de Augusto dos Anjos entre duas pizzas calabresas e um guaraná 2 litros. Lutando contra a microfonia e concorrendo com os motores das motos que subiam e desciam a rua, Joílson abriu o evento com um discurso inflamado:

? Eu não sei se a gente faz isso porque é ruim ou se a gente faz isso porque é péssimo ? exclamou.

? É porque a gente é louco! ? respondeu alguém na ?plateia?. Joílson continuou:

? Pizzaria não tem ?H?, mas isso aqui virou um hospício… Virou um hospício para curar a gente dessa loucura chamada ?desprezo do poder público?. Roubaram nossa paz. Devolvam nossa palavra, devolvam o cantar, a nossa voz!

O público exultou e Joílson pediu então um minuto de silêncio em protesto pelo fechamento da Biblioteca-Parque da Rocinha. Todos se calaram em suas mesas, cabeça baixa.

Autor de livros como ?Amor e Traição no Calabar? (Azougue) ? primeiro lugar do Edital Novos Autores Fluminenses da Secretaria de Cultura do Estado de Cultura do Rio de Janeiro, em 2010 ?, o baiano Joílson se mudou para a Rocinha em 1999 e desde então vem tentando promover a literatura no local. Apadrinhado pelo compositor Jorge Mautner, já animou programa de rádio comunitária sobre poesia, ministrou oficinas para crianças e incentivou autores a publicarem seus livros. A inauguração da biblioteca-parque, em 2010, facilitou em muito os seus esforços. Além de ajudar a reunir grupos antes espalhados e a formar uma verdadeira cena cultural, o espaço era usado para eventos como o Sarau Letras da Favela, idealizado por Joílson.

? No sarau, promovíamos a leitura com sorteio de livros, doados por saraus das áreas ricas ? lembrou. ? Dávamos espaço para os poetas lançarem suas obras. Também fazíamos o Sarau Letrinhas da Favela, que acontecia na Semana da Criança, no qual chegamos a distribuir gratuitamente 235 livros para as crianças da Rocinha em um só dia. É incalculável o que foi perdido desde que o desânimo virou rotina na comunidade com a notícia do fechamento da biblioteca.

63726919_SC Rio de Janeiro RJ 09-01-2017 - Apresentacao do sarau do coletivo Bando Cultural Fave.jpg

Raquel, que é poeta premiada e já romanceou sua história real como ex-chefe de boca de fumo (ela foi amante do famoso traficante Naldo) no livro ?A número um? (Casa da Palavra), confirmou que o clima é de pessimismo com o fechamento da unidade, apesar das promessas da Secretaria estadual de Cultura de que as bibliotecas do estado devem reabrir o mais rápido possível.

? Nós estamos meio céticos de que isso vai acontecer ? disse Raquel, uma ex-dependente química que encontrou na literatura uma ?salvação?. ? Antes, já havia os autores solitários e saraus isolados que surgiam e morriam logo em seguida. Mas a biblioteca reuniu todas as manifestações artísticas em um mesmo espaço.

Os cursos e eventos promovidos no local formaram novos autores, desde jovens a idosos que tiveram contato tardio com os livros, contou Raquel.

? Eu, que moro aqui há 55 anos, ia ao sarau e ficava bestificada de saber que havia tantos artistas inseridos no morro ? disse ela. ? Nunca houve antes um espaço cultural como esse aqui dentro, com essa estrutura. Vamos combinar, é muito melhor que uma pizzaria.

Embora não tenha a estrutura de uma biblioteca-parque, a Pizza Lit é um espaço tradicional da cultura da comunidade, e há duas décadas vem incentivando artistas locais recebendo lançamentos de livros, shows e, agora, saraus. De qualquer forma, a improvisação faz parte de quem lida com arte na Rocinha. O Bando Cultural Favelado, por exemplo, nasceu há 12 anos em um salão de beleza localizado alguns metros abaixo da pizzaria. O fundador Richard Castelo Branco e sua trupe estão acostumado a fazer teatro de guerrilha, representando em qualquer lugar ? calçadas, lojas, restaurantes… A rua era o palco natural do grupo, mas, com a estrutura da biblioteca-parque de 1,6 mil m², que oferecia um cineteatro e salas multiusos para cursos, seus horizontes se expandiram. Pela primeira vez, puderam se apresentar em um palco de verdade para a sua própria comunidade ? até então, suas apresentações em teatro tinham sido todas fora da Rocinha.

? Somos o único grupo da Rocinha a pisar no palco profissionalmente fora da comunidade, ou seja, no ?asfalto? ? lembrou Castelo. ? Só que era complicado levar o nosso público-alvo, que são os moradores daqui, para nos ver num lugar longe como o Teatro Dercy Gonçalves, no Grajaú. Então, quando a biblioteca veio para cá, foi o ponto máximo, porque passamos a ter um palco profissional dentro da comunidade.

Uma das primeiras apresentações no teatro da biblioteca foi uma cena do espetáculo ?Brasil, um país de poucos?, do próprio Castelo e da atriz Bruna Rios. O texto faz alusão à ditadura militar, mas poderia muito bem representar a realidade dos moradores locais, vítimas diárias da violência. Com a casa cheia, a performance repercutiu, e o grupo chegou ser convidado para levá-la para França e Inglaterra ? por falta de verbas, o plano de encenar no exterior foi adiado.

? Quando a gente apresenta aqui dentro, a emoção é muito maior ? diz Bruna Rios. ? A mãe que perde o filho no espetáculo muitas vezes está olhando para você. Tem gente que só vê arte através do que a gente faz aqui na rua.

63727017_SC Rio de Janeiro RJ 09-01-2017 - Apresentacao do sarau do coletivo Bando Cultural Fave.jpg

Em um dos momentos fortes do sarau na Pizza Lit, o grupo apresentou uma cena curta de ?Brasil, um país de poucos?. Jovens vestidos de preto, com roupas rasgadas, apertavam-se em uma fila, enquanto um torturador batia neles com a palavra de ordem: ?Pede para sair soldado!? O público assistiu hipnotizado à encenação, que serviu de aquecimento para um outro protesto. Duas semanas depois, no dia 23 de janeiro, o bando realizou uma procissão com velas acesas, em sinal de luto pelo fechamento da biblioteca. A performance se iniciou na passarela da Rocinha e foi subindo por toda a Via Ápia. Crianças leram poemas clamando pela reabertura.

A Secretária estadual de Cultura informou, por meio da assessoria, que vem se reunindo com lideranças comunitárias para viabilizar a ocupação do teatro da Biblioteca-Parque da Rocinha para atividades como ensaios de grupos de balé. Os membros do Bando Cultural Favelados, porém, disseram que desconhecem essa informação.