Cotidiano

Romancista consagrado, Cristóvão Tezza reúne crônicas em novo livro

Estão lá suas observações sobre as conversas de avião, as anotações sobre o dia em que resolveu usar o GPS pela primeira vez, a surpresa diante do fato de a cidade de Curitiba ter tantas sociedades secretas, comentários soltos a partir do filme ?Kung fu Panda? (2008), entre toda sorte de minúcias do dia a dia. Ao longo de seis anos, o premiado romancista Cristovão Tezza assinou uma coluna de crônicas semanais no jornal paranaense ?Gazeta do Povo? ? textos de 2.800 caracteres, que ao final ele escrevia de maneira cravada, sem consultar o ?contador de palavras? do programa do computador. As melhores delas foram publicadas em ?A máquina de caminhar? (Record), que acaba de chegar às livrarias. Ao final do livro, há um discurso de Tezza, em tom de mea-culpa, em que ele admite nunca ter sido muito fã do gênero, ?brasileiro como a jabuticaba?, brinca ele, até assumir o compromisso com o periódico, entre 2008 e 2013. Autor do clássico contemporâneo ?O filho eterno?, Tezza conversou sobre os frutos frescos da sua jabuticabeira com O GLOBO.

Você nunca foi um apaixonado pelo gênero. O sentimento mudou?

Sim. O trabalho muda as pessoas. Escrevendo toda semana, passei a ler as crônicas dos mestres contemporâneos do gênero (Cony, Verissimo, Ruy Castro) com olhos muito mais atentos, tentando observar não só os temas, os tipos de humor, as pegadas políticas, mas a carpintaria desse texto supostamente ligeiro. A chamada liberdade do cronista é um espelho falso. A limitação do espaço, a vitrine despudorada do jornal e a presença instantânea da figura do leitor são um garrote sutil.

O que aprendeu, em termos de linguagem, com as crônicas?

O ?aqui e agora? da crônica são sempre o seu tom dominante, a sua razão de ser, e isso afeta tudo. O tom de ?conversa com o leitor?, outro traço indispensável, puxa pelo coloquial da linguagem, a fala por escrito, a clareza instantânea. Do ponto de vista da linguagem, a crônica abomina o obscuro, o hermético, a frase comprida, o nó cego ? que podem ser, eventualmente, a alma da boa literatura.

De supetão: quais seriam as três crônicas brasileiras que citaria como exímias? Para citar um termo seu, quais seriam as ?royal straight flush? do gênero?

No século XIX, Machado de Assis criou a crônica como um gênero moderno, nascida diretamente da observação de fundo jornalístico e temperada sempre pelo duplo sentido da cultura brasileira. É como se, até hoje, o cronista ainda tivesse de despistar ou enganar um censor para chegar ao leitor. Essa marca essencial permanece até hoje. Cito apenas uma, como um arquétipo possível da crônica brasileira do século XX: ?Ai de ti, Copacabana?, de Rubem Braga. Um breve fato cotidiano, um aterro na praia, ou a maré alta, se transforma numa página altissonante da Bíblia, numa fusão maravilhosa.

As postagens das redes sociais (com rapidez, ironia, humor) transformaram todos em cronistas?

Bem, cronista não dá em árvore ? menos ainda por geração espontânea da internet, que entre nós é um território selvagem e pesadamente iletrado. Nesse sentido, é o Brasil real que veio à tona. Bem, potencialmente, sem dúvida a internet é um território privilegiado que abriu caminhos para o texto. Mas a camisa de força do gênero é poderosa: a crônica respira pelo jornal cotidiano, pela notícia diária; e tem de ser curta, ou vira outra coisa. Mais que tudo, a crônica suplica para ser lida aqui e agora. A liberdade da internet vem lado a lado com um gigantesco e difuso anonimato. O que é bom para o filósofo, talvez, mas péssimo para o cronista.

Você já escreveu a famosa crônica sobre a falta de assunto?

Sim, muitas vezes. Às vezes, o assunto é só um disfarce para o vazio na cabeça.

Por que a crônica tem tanta leitura, mas tão pouca vendagem (é quase um senso comum entre editores o dogma de que ?crônica vende mal?)?

O jornal é o motor da crônica, a sua razão de ser; também como no jornal, a crônica costuma se esgotar na própria leitura. Há quase que uma incompatibilidade genética entre o livro e a crônica. O livro precisa criar uma unidade própria que nem sempre é visível na vida real da crônica. Mas ele permite um olhar muito mais completo e revelador sobre o cronista, no sentido pessoal da palavra. Colocadas lado a lado, as crônicas vão criando uma visão de mundo mais articulada que não transparece nos fragmentos diários.

Apesar de ser um gênero ?jabuticaba?, como você brinca, por ser genuinamente brasileiro, a crônica não é comumente mote de prêmios ou seminários. Há certo desprezo?

Sinceramente, não vejo assim. Acho que ela tem uma boa visibilidade, leitores fiéis, e vem sendo objeto de alguns prêmios importantes, como o Jabuti. Já participei de muitas mesas em eventos literários discutindo o gênero. É verdade que às vezes se ouve uma choradeira sobre a crônica como um gênero ?injustiçado? ou ?desprezado?, mas isso para mim não faz nenhum sentido. Considero a crônica um ramo desgarrado do jornalismo, e não da literatura ? é justamente nesse meio caminho que ela brilha. É uma ligação umbilical inescapável, e a crônica paga algum preço por isso. A tentativa de fazer dela literatura ?pura?, ou algo assim, na esmagadora maioria dos casos produz prosas poéticas aborrecidas que acabam não sendo nem uma coisa nem outra.

Os cronistas tradicionais apelam muito para a nostalgia ou patrulha, não acha?

A nostalgia é um mote clássico fantástico da cultura brasileira. Gostamos de alimentar um amor irresistível por um belíssimo passado imaginário. Como ele jamais existiu, acabamos por nos refugiar na memória pessoal, aproveitando pedaços de bons momentos para contrapor, com a graça possível, ao inferno do instante presente. Mas há também uma questão geracional, quem nasceu nos anos 1940 e 50 viveu talvez as mais radicais transformações tecnológicas de que se tem notícia. Passei a infância vendo a carroça trazer lenha para o fogão de casa. Hoje respondo você num Macbook. Claro que esse contraste é material riquíssimo para o cronista maduro. Sobre as patrulhas politicamente corretas, que costumam ser delírios levados a sério, nada pode ser mais avesso ao espírito da crônica, como gênero, do que elas. Um cronista com medo da ambiguidade, do humor e do duplo sentido está morto.

Você encara diversos temas comezinhos, mas a referência à literatura está sempre presente. É irresistível?

Não consigo me imaginar fora do âmbito da literatura ? sinto que ela me educou, como leitor e como escritor, e me fez por inteiro. A ficção é um modo refinado e tolerante de percepção do mundo, uma criação fantástica da cultura universal, que precisa ser permanentemente alimentada.