Cotidiano

Rodas de samba do Rio apostam em músicas inéditas

Links rodas de samba

RIO ? ?Essa meia me dá sorte há 22 carnavais?, disse o compositor Nier Ribeiro, 69 anos, deixando a meia vermelha estampada com um sorriso aparecer entre a calça e o sapato brancos, enquanto cruzava elegantemente uma perna sobre a outra.

Nier aguardava a vez de defender um samba de sua autoria na roda Samba na Fonte, que acontece toda terça-feira, às 19h, no botequim Vaca Atolada, na Lapa. Naquele dia, era o quarto da fila. A roda funciona assim: em ordem de chegada, cada compositor associado (são cerca de 30) anota o nome em um caderno que fica sobre a mesa dos músicos, uma espécie de ?livro de ouro? do evento, para apresentar seu samba inédito. Não tem bagunça.

Veja onde estão, quando acontecem e como funcionam as rodas

? Eu estava prestes a parar de compor por causa das disputas de samba-enredo, que estão cada vez mais agressivas ? conta Nier, natural de São Gonçalo e ex-integrante da Ala de Compositores da Porto da Pedra (por isso ainda o apego ao vermelho e branco, cores da escola). ? Mas aí um amigo me trouxe nessa roda, antes que eu desistisse de vez. Fiz o ?estágio? por uns dois meses, dando canja, submetendo meus sambas à diretoria e fui aprovado com louvor! Esse é um dos poucos lugares no Rio onde a gente tem chance de mostrar músicas.

De acordo com um levantamento feito em 2016 pelo Instituto Eixo Rio com o Instituto Pereira Passos, há cerca de 140 de rodas de samba em atividade na cidade, número que não para de crescer (desde 2015, a maioria delas integra a Rede Carioca das Rodas de Samba, uma associação criada por decreto municipal para fortalecê-las).

Entre todas elas, no entanto, apenas cinco mantêm a característica rara de cantar exclusivamente músicas inéditas. Como a Samba na Fonte, às terças, na Lapa, e às quintas, na Pedra do Sal; a roda Aos Novos Compositores, nas segundas quintas do mês, na Lapa; a Buraco do Galo, nos primeiros sábados do mês, em Oswaldo Cruz; a Compositores de Resistência, no Engenho da Rainha, sem data fixa; e a Terça Desamplificada, toda terça, também na Lapa.

? Sabe por que os medalhões hoje só regravam músicas antigas? Porque eles não frequentam essas rodas. Tem muito samba bom aqui, e para todo gosto: sincopado, samba de chapéu, partido alto, até ijexá ? enumera Nier, já quase na hora de cantar o seu hit, ?Não acreditou, se perdeu?, sobre um sambista que pediu ajuda a Xangô para fazer sucesso, não cumpriu as oferendas e teve destino trágico (?O emprego ele perdeu, a mulher que amava foi embora com tal de Nonô/ Até a casa que ele morava, a enchente carregou/ Hoje cata guimba na rua, dizendo que é compositor?).

Vice-diretor, Mario Jr. diz que manter essa roda é fazer um movimento de ?resistência cultural”.

? São músicas que o público não conhece, tem que aprender a cantar. Mas não tem preço ver um Wilson Moreira ou um Toninho Geraes mostrando um samba novo, como já aconteceu.

Outro exemplo de resistência é a roda Aos Novos Compositores. Uma vez ao mês, os participantes se encontram na ?sede?, o bar A Paulistinha, e estendem em frente ao local uma grande lona laranja, dando ao evento um jeitão circense.

? A roda atrai muita gente nova, como você pode ver ? comenta o compositor Haroldo César, um dos mais assíduos, apontando uma jovem que acabava de estacionar sua bicicleta para se juntar ao grupo. ? Daqui sai muita coisa boa. Você já ouviu o samba ?Feijão queimado??

Samba de portas abertas: Rodas buscam os novos compositores

Haroldo se referia ao grande sucesso da roda, que já foi sondado por gravadoras e conta a história de uma mulher que foi dormir e esqueceu a panela no fogo, quase causando um incêndio na favela. De Will Freitas, sambista da roda, a música surgiu no ?quarto caderno?.

Explica-se: de quatro em quatro meses, os compositores submetem seus novos sambas à diretoria do grupo. As escolhidas têm suas letras impressas num caderno, que é copiado e distribuído ao público. Assim, durante as quatro rodas seguidas, só são tocadas as músicas daquele caderno, tempo suficiente para que os frequentadores aprendam a cantar. Atualmente, o evento está no quinto caderno.

? Um truque é que aqui sempre se repete, a capela, a música que acabou de ser tocada, para facilitar a memorização da letra ? acrescenta Haroldo, que é gari e naquele dia defenderia o seu ?Terreiro de seu Nicanor?, sobre uma umbanda onde todos os problemas se resolvem.

Outro exemplo é a Terça desamplificada, roda acústica onde são distribuídas as letras dos novos sambas no último bloco do evento. O percussionista Lula Matos é um dos mais profícuos:

? Nos anos 1960, o samba tomou fôlego com Zé Kéti; nos 70, com Martinho da Vila; nos 80, com o Cacique de Ramos; nos 90, com o pagode; e nos anos 2000, com os novos sambistas da Lapa. Por isso é tão importante manter esse celeiro vivo.