Cotidiano

Rio-2016: A última loucura de Mortadelo & Salaminho

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RIO ? Hoje em dia, só dá para ler em espanhol e uns poucos idiomas para os quais ?Mortadelo & Salaminho? (?Mortadelo y Filemón?) ? outrora sucesso mundial em dezenas de países, escrito e desenhado pelo catalão Francisco Ibañez ? ainda são traduzidos. Editadas no Brasil entre as décadas de 1974 e 1980 (28 álbuns) pela Cedibra, as histórias dos detetives da T.I.A (Técnicos de Investigações Avançadas, na versão brasileira) produziam gargalhadas em série, com suas gags explosivas e velocíssimas, em que os dois personagens (e suas vítimas) sofrem ferimentos gravíssimos dez vezes por página e, em seguida, estão prontos para a próxima (influência que Ibañez teve da linguagem de desenhos animados americanos); ou com sua noção completamente achatada do espaço e do tempo, de modo que se pode estar em Madri neste instante e, segundos depois, chegar, a nado, a um iglu, em fuga, perseguido por seres enfurecidos carregando mísseis atômicos no ombro (influência dos quadrinhos belgas e de toda a tradição europeia do nonsense).

A acidez de sua crítica social, que mostra a dinâmica urbana espanhola como um grande e confuso arremedo de civilização, aliada a uma estereotipia exacerbada ao retratar outros povos (mas que os iguala dentro de uma mesma insana condição humana) criaram uma linguagem única, atordoante, ornamentada por onomatopeias adoravelmente esdrúxulas.

Aos 80 anos, Ibañez, de posse dos direitos de sua obra (que ficaram por longo tempo nas mãos da editora Brugera), lança atualmente seis álbuns por ano, em geral baseados em eventos notórios. Como a Rio-2016, palco da aventura mais recente. Nela não estão presentes personagens antológicos como o Professor Bactério ou o Míope. Os ineptos, malandros e obstinados detetives recebem do Super (o patético superintendente da T.I.A) a missão de investigar, nos Jogos do Rio, uma espécie de doping ao inverso: alguém estaria envenenando atletas de modo a debilitá-los, fazendo dos mais fortes fracotes e, dos mais rápidos, jabutis humanos.

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Não se pode dizer que Mortadelo & Salaminho modernizaram-se: são exatamente os mesmos criados por Ibañez em 1958 (ano em que nasceu a bossa nova…). A dinâmica continua viva: entre a submissão e a astúcia vingativa, Mortadelo (o narigudo, capaz de se disfarçar de qualquer coisa, de um mosqueteiro a uma borboleta) e seu ?chefe? Salaminho fazem sucessivas tentativas de resolver missões, mas sempre há algum engano. Resultado: pessoas inocentes sofrem o diabo, muros desabam, aposentos explodem, pobres coitados são fritos em fornos, acidentes com 50 carros acontecem em esquinas lotadas. No fim de cada etapa, a dupla recebe a forra em dose cavalar, ou esconde-se, com a ajuda dos disfarces. Neste gibi de 46 páginas, aparece, como não podia deixar de ser, um Rio de Janeiro completamente distorcido, no qual o ?Maracaná? (sic) parece uma repartição pública, o Cristo Redentor fica no calçadão, os cidadãos sambam o tempo inteiro e vendem-se araras a cada esquina. A certa altura, os detetives da T.I.A constatam que cada delegação recebeu, como mascote da organização, um crocodilo. Concepção que o autor tem do que seria um agrado à brasileira, num tempo em que os maus-tratos a jacarés estão nas manchetes.

O episódio bem real da onça Juma, contudo, num dos eventos que precederam os Jogos e resultou na morte do animal, não desautoriza de todo a caricatura de Ibañez. Não dos cariocas, mas de como a natureza humana persiste em se mostrar destrambelhada.

Nada, mesmo, contra os brasileiros: a delegação da Coreia do Norte no desfile de abertura, por exemplo, resume-se à passagem de um míssil; os espanhóis são uns ignóbeis; há uma delegação israelo-palestina na qual rabinos e mulás se entredevoram; e a delegação síria, chamada de ?circunspecta?, é composta por homens-vela.

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No decorrer dos acontecimentos, os fatos levam Mortadelo e Salaminho, em questão de segundos, à Amazônia , às Cataratas do Iguaçu e a uma aldeia indígena, onde Salaminho sofre um encolhimento de crânio que o deixa muito chateado. Mas, quadrinhos adiante, estão novamente nas instalações olímpicas cariocas.

Na trilha de perseguições, ainda vão parar no Egito a bordo de um tapete voador turbo, mas, em seguida, estão no quarto do hotel nauseabundo que lhes foi reservado no Rio, pois sua reputação vai, sempre, de mal a pior aos olhos da T.I.A e de seu superintendente. É bastante evidente que o desastre se irá agravando progressivamente, a ponto de a dupla, na tentativa de provar que um pobre velhinho é um atleta debilitado, provoca uma revolta popular por ter agredido um idoso morador de rua em sua luta pela subsistência. E tudo terminará muito, muito mal, quando o diretor sanitário da Rio-2016 (seja lá o que isto for), confundido com um suspeito, sofrer um acidente. O assunto ganhará repercussão global e nossos agentes irão encontrar refúgio imediato num bando de focas siberianas. Sem grandes consequências: eles seguirão para a próxima missão em breve. Pois no mundo de ?Mortadelo & Salaminho?, spoilers não são possíveis: já se sabe tudo que vai acontecer. Porém, num truque de lógica, a surpresa nunca cessa…

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