Cotidiano

Ricardo Araújo Pereira elogia o humor brasileiro

RIO ? Vítimas das piadas mais básicas feitas em terra tupiniquim, os portugueses e suas interpretações alegadamente literais não serviram de munição para uma possível revanche de Ricardo Araújo Pereira, convidado desta quinta-feira do último Encontros O Globo – Especial Pós-Flip, contra os brasileiros. Pelo contrário. O humorista português, que lança “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar – Uma espécie de manual de escrita humorística” (Tinta da China Brasil), elogiou o humor dos brasileiros. Durante o papo, mediado pela repórter Mariana Filgueiras na Livraria Travessa, no Shopping Leblon, ele também discursou sobre a importância do riso e sobre os mecanismos criativos por trás de uma piada.

Famoso, entre várias razões, pela quantidade de referências e pelo amplo repertório cultural e político, ele lembrou de um caso de brasileiros que chegaram a um restaurante em Portugal e pediram por uma mesa. Ao que o garçom teria respondido: “Temos mesas, mas é melhor sentar na cadeira”. Seguiu citando “Hamlet”, de Shakespeare, antes de ir ao ponto.

? O jeito que vocês (brasileiros) usam a nossa língua é muito engraçado. Vocês fazem coisas mais vivas, mais próximas da oralidade. Isso torna a nossa língua mais ágil ? disse Pereira, citando suas referências brasileiras, como Machado de Assis, Luis Fernando Verissimo (que, aliás, estava sentado na primeira fileira da plateia, para a surpresa do convidado) e até mesmo o grupo Porta dos Fundos. ? “Memórias póstumas de Brás Cubas” é fundamental. Li com muito orgulho, apesar de eu não ser brasileiro. Woody Allen citou esse livro como uma referência. Isso me deixou muito emocionado.

O humor extraído da morte, como indica o título de sua obra recém-lançada, é um tema importante para Pereira. Egresso de uma escola religiosa, porém ateu (uma relação de causa e efeito, ele brincou), o português minimizou as vantagens do riso para a saúde, algo que muitos estudos médicos costumam listar:

? O que me interessa é o que o humor faz do ponto de vista filosófico. É uma estratégia para aguentarmos a dureza do mundo. Há muitos epitáfios que fazem piadas, e também muitos relatos de pessoas que contaram piadas em seu leito de morte. Eu entendo. Tem a ver com o fato de a gente não aguentar conviver com a informação terrível de que vamos morrer. E fico fascinado em ver uma pessoa rindo por minha causa.

Em Portugal, Pereira, integrante do coletivo Gato Fedorento, também escreve crônicas para jornais e revistas, além de produzir conteúdo para rádio e TV (“Sou como um câncer que contamina todos os meios de comunicação”, comparou). Embora bastante reconhecido nas ruas, principalmente em seu país, ele foge das redes sociais ? atitude aparentemente surpreendente num mundo em que a internet, com seus memes e virais, virou uma das maiores fontes de fast-humor. Ele explicou o motivo:

? Todo mundo torna pública a sua vida privada, algo que eu sempre evitei. Tenho muito pudor. Outro motivo é que (os artistas) usam o Facebook como uma espécie de Testemunhas de Jeová de si mesmas: “Já conhecem o meu trabalho?”, “Vou lançar um livro no dia tal” etc. Fico chocado também com a vontade de as pessoas quererem participar de linchamentos, uma coisa meio machista. Sou uma pessoa meio antiquada nesse sentido.

Sobre o seu “manual da escrita humorística”, Pereira disse que é até capaz de concordar que humor não se ensina, mas certamente se aprende, “caso contrário eu não teria conseguido”. Uma das principais dúvidas dos aspirantes a comediantes e escritores, afinal, é: por onde começar?

? Quem quer ser um pintor vai para a escola de Belas Artes, mas quem quer escrever vai para onde? Eu acho que é forma com que olhamos para as coisas. Trata-se de tomar o mundo como um jogo. Por exemplo, há duplas humorísticas que só funcionam juntas, como O Gordo e o Magro. Outra vezes, o jogo é virar algo de pernas para o ar, como o Verissimo, que iniciou um de seus contos assim: “Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano”. É uma referência a “A metamorfose”, de Kafka. Aí o personagem vê coisas no Brasil que nem Kafka imaginaria.