Cotidiano

Retórica agressiva de Trump é desafio para intérpretes do mundo todo

64510135_US President Donald Trump flanked by Joseph Sellers L and Gary Masino 2nd L of the Sheet Me.jpg

RIO ? Dentre as suas tantas peculiaridades, o recém-empossado presidente dos EUA, Donald Trump, talvez tenha chamado atenção no mundo todo, sobretudo, por causa de uma delas: a sua agressiva ? e por vezes um tanto quanto confusa ? retórica. Lá se vão meses que o magnata surpreende com trejeitos, expressões informais, palavras atropeladas e até mesmo termos vulgares em cima do palanque. E, no meio do emaranhado linguístico, os tradutores de todo o mundo vêm enfrentando uma série de desafios para recriar com precisão o conteúdo e o tom na fala inusitada do presidente, cujas decisões são capazes de afetar países de vários cantos do planeta.

O discurso populista de Trump é marcado por construções bastante simplistas. Frases parecidas se repetem uma atrás da outra, geralmente em alta velocidade, e o seu vocabulário pode ser bastante limitado. Tudo isso pode dificultar a vida de um tradutor cuja missão é dar um sentido correto, porém conciso, às palavras do presidente.

O francês, por exemplo, é um idioma muito bem estruturado, com disposições textuais geralmente bastante lógicas. E, por isso, reproduzir as frases de Trump é especialmente complicado em certas ocasiões. Ao ?Washington Post?, a tradutora profissional Bérengère Viennot relatou que se vê frente a um dilema: traduzir literalmente cada palavra que sai da boca do presidente, e deixar os franceses se virarem para entender o que ele quis dizer; ou, então, prezar pela compreensão do conteúdo e amaciar um pouco o seu estilo. O risco, no entanto, é não transmitir quão intempestivo é o seu jeito de falar e, com isso, não deixar compreensível que o seu discurso é muito diferente do que se espera de um político tradicional.

Em línguas ainda mais distantes do inglês, a forma de pensar a língua também vira obstáculo para entender o novo chefe da Casa Branca. Este é o caso do japonês, por exemplo, cuja compreensão depende, antes de tudo, em identificar o assunto principal de uma conversa. Segundo a tradutora Agness Kaku, que já trabalhou para vários políticos em Tóquio e deu entrevista ao ?Post?, é fácil identificar quem são os sujeitos das declarações de Trump ? não raro ele mesmo versus aqueles a quem chama de inimigos. Mas nem sempre é possível entender qual é o tema que o presidente tenta abordar, já que ele costuma misturar vários assuntos e trocar de um tema para outro muito rápido, percorrendo caminhos tortuosos até completar um raciocínio.

Um dos casos citados por Agnes foi ocasião em que, na campanha presidencial, Trump questionou publicamente por que Ghazala Khan, mãe de um soldado americano que morreu no Iraque em 2004, não falou nada quando subiu ao palco da Convenção Nacional Democrata. Apenas o seu marido se pronunciou no microfone para citar o sacrifício de seu filho e criticar a proposta do magnata de impedir a entrada de muçulmanos no país.

Na ocasião, ele disse: ?A sua mulher ? se você olh apara a sua mulher, ela estava lá parada, não tinha nada a dizer. Ela provavelmente…talvez não fosse autorizada a ter algo a dizer. Você me diz, mas muitas pessoas escreveram isso..?. E a tradução, para se adaptar à compreensão precisa dos japoneses, virou uma frase muito mais direta: ?Ela provavelmente não tinha autorização para fazer um pronunciamento?. O resultado acabou sendo uma acusação mais forte do que as palavras de Trump, em sua língua natal, talvez sugerissem.

? Havia muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo naquela frase e muito daquilo foi perdido ? disse Kaku ao jornal americano. ? Você tem que cortar muito para produzir alguma coisa que faça algum sentido.

Além disso, não foram poucas as vezes em que o republicano usou linguagem extremamente vulgar, incluindo palavrões em alguns casos. Em um áudio de 2005 vazado no ano passado, para descrever seus métodos de seduzir mulheres, Trump usou a expressão ?pussy? (um termo vulgar para se referir ao órgão genital feminino). Ou, então, em um debate chamou a sua então rival, Hillary Clinton, de ?nasty woman? (o equivalente a algo como ?mulher asquerosa?). E, por causa de todas estas variantes nada comuns ao discurso de um candidato à Presidência ? e ainda mais inusitadas para um efetivo chefe de Estado ?, se torna um desafio ainda maior para tradutores e intérpretes acertar o tom do republicano, cuja fala se dilui entre duplos sentidos, armadilhas semânticas e um formato particular de falar ao público.