Cotidiano

Rennan Lemos, historiador: 'A maioria dos egípcios antigos nunca viu uma múmia'

“Sou carioca, tenho 26 anos. Meu interesse pelo Egito veio da infância, do fascínio que ele desperta nas pessoas em geral e me levou a buscar as informações sobre aquela sociedade tão notável. No ano passado, mudei-me para Cambridge, iniciando meu doutorado.”

Conte algo que não sei.

A maioria dos egípcios antigos nunca viu uma múmia. Existe uma diferença imensa entre o que a gente escava em cemitérios do povo comum – com uma grande quantidade de enterramentos simples, covas rasas escavadas nas areias do deserto – e o que vemos, por exemplo, na exposição do Museu Nacional. Caixões lindamente decorados, estelas com textos elaborados gravados, múmias bem preservadas e preparadas, expressando a ideia de um pós-morte detalhado e rico em mitologia.

Qual a diferença?

Nos cemitérios onde trabalho não há nada disso. Primeiramente, não há múmias. São muitos ossos. Mas, mesmo quando os corpos não estão preservados como estamos acostumados a ver em túmulos egípcios, há um cuidado na deposição desses restos nas covas rasas. Algumas delas apresentam uma arquitetura simples , de tijolos de barro cozido. Aquelas pessoas acharam importante terem alguma espécie de proteção, muitas vezes na impossibilidade de conseguir um caixão de madeira pintado com inscrições.

No que isso afeta o seu trabalho?

A gente não consegue dizer com certeza no que aquelas pessoas acreditavam. Nos hieróglifos de uma tumba, descobrimos que o morto tinha intenção de passar no julgamento de Osíris e entrar no seu paraíso agrário. No caso dos cemitérios que estudo, isso não existe, pois aquelas pessoas não sabiam ler nem escrever, mesmo que haja ali objetos inscritos. O próprio corpo tem um significado diferente. Não creio que essas pessoas achassem que a vida acabava com a morte; isso não é típico dos egípcios. Ou seja, elas teriam um pós-morte mesmo que seu corpo não estivesse preservado como uma múmia.

O que isso nos conta da vida dessas pessoas?

Em diversos sítios, por exemplo, temos tumbas de grandes oficiais e membros da elite egípcia. E, ao redor, enterramentos mais simples. Vemos aí uma tentativa de engajamento. As pessoas , em vida , não tinham acesso a determinados bens ou objetos, mas a proximidade com um túmulo mais luxuoso talvez lhe s garantisse uma aspiração. É interessante ver como essas pessoas muito pobres também se organizavam para conseguir acesso a objetos associados à elite, como hoje acontece com produtos “de marca”.

Como isso funcionava?

No meu mestrado, estudei três cemitérios populares no Egito. Naquele em que identificamos a maior pobreza estrutural, encontramos os objetos mais finamente decorados, como estelas com oferendas ao defunto ou caixões pintados. Por mais pobres que fossem, aquelas pessoas conseguiram acesso a uma oficina nos locais onde viviam e obtiveram esses objetos. Mas não eram as oficinas que atendiam às elites. Encontramos textos em caixões com erros gramaticais nos hieróglifos. Mas vemos ali um jogo social, uma circulação por determinados meios que permitia acesso a determinados padrões, que vão ser somados à vivência daquelas pessoas.

Isso era generalizado no império egípcio?

Sim. No doutorado, estudo cemitérios populares na baixa Núbia (hoje fronteira entre Egito e Sudão). Mas também os encontramos nas grandes capitais reais. Lá estão enterrados os pobres que trabalharam nas construções das cidades. Habitavam casas pequenas próximas aos palácios da elite, numa situação que encontramos também nos cemitérios.

Por que o Egito antigo exerce esse fascínio?

É muito subjetivo. Quando travamos contato pela primeira vez com a cultura, vemos sua grandiosidade, que desde a sua pré-história produziu elementos distintos e grandiosos. Você chega a Karnak, onde está o templo dedicado a Amon-Rá, o maior da Antiguidade, e vê o quão pequeno a gente é e, ao mesmo tempo, se admira da nossa capacidade de produzir grandeza. E num momento de crises generalizadas como o atual, a gente olha p a ra um passado remoto e tem um exemplo de quão grandiosos podemos ser.

E quais são os erros comuns ao pensar no Egito?

Hollywood é a grande responsável pela desinformação em relação ao Egito, embora eu me divirta muito com esses filmes e não ligue para os erros. Por exemplo, se você tem os filmes em mente, acha que, ao explorar uma tumba, vai encontrar um monte de armadilhas. Não é o caso, estamos escavando uma tumba em Luxor. Existem, sim, muitos poços, muitas câmaras, mas nada de dardos, alavancas ou catapultas. É bem difícil trabalhar em ambientes com o aqueles, depen dendo de cordas para descer poços etc. Há um risco, mas nada p reparado pelos antigos egípcios com o objetivo de nos matar.

Mas a culpa é só do cinema?

Não. A própria grandiosidade do Egito provoca essa confusão. A gente chega na frente da grande pirâmide de Giza e se pergunta como isso foi construído. Seria um grande desafio para arquitetos e engenheiros de hoje. Dia desses, depois de uma aula no curso, uma senhora veio me perguntar se as pirâmides tinham sido construídas por gigantes. Eu me pergunto: “Será que ela já viu algum gigante?”

Como resolver isso?

Conforme a egiptologia vai evoluindo, acabamos tendo informações, mesmo fragmentadas, sobre como essa grandiosidade foi produzida. Recentemente , foi encontrado num porto do Mar Vermelho um papiro que relata parte do processo de construção da grande pirâmide. Ao mesmo tempo que nos provoca confusão, o próprio Egito nos apresenta respostas.

E quanto à rejeição da identidade africana do Egito?

Isso é um dilema atual da própria egiptologia. Devido à visão orientalista e do eurocentrismo, vemos a recusa de alguns especialistas de posicionar o Egito na África. Dizem que o Egito é parte do Oriente Próximo, deslocando o Nordeste africano para a Ásia pois seria “menos pejorativo”. Mas o que a arqueologia nos mostra, tanto em sítios no coração do império quanto na Núbia, é uma grande dinâmica de trocas culturais e econômicas de influência mútua.

Isso acaba tendo uma conotação política?

É uma demanda da própria sociedade de hoje, de lutas por igualdade de direitos. Não acho que nós, especialistas, devamos assumir o discurso dessa ou daquela corrente, mas temos de enfatizar o que vemos nos próprios dados e vestígios que encontramos no Egito e nas regiões vizinhas, e eles posicionam a cultura egípcia no contexto africano.