Cotidiano

Protecionismo é o maior temor de analistas quanto a Trump

RIO – A primeira reação dos mercados financeiros globais à vitória de Donald Trump, ainda na madrugada de ontem, foi de desespero. Bolsas e índices futuros despencaram. Todos foram pegos de surpresa. O restante do dia, porém, foi uma prova de recuperação: o medo foi substituído pela percepção de que a plataforma econômica do republicano tende a ser amigável com o segmento corporativo, com sua defesa de corte de impostos e de investimentos em infraestrutura. Um discurso de vitória conciliador contribuiu para incutir nos críticos a esperança de que, talvez, o presidente morderia muito menos do que ladrava o candidato. O domínio do Congresso pelo seu partido ajudou.

Mas, apesar da recuperação dos ânimos, paira sobre o magnata a falta de informações claras sobre o que ele de fato pretende fazer na economia. Um dos poucos pontos com contornos mais nítidos, aliás, é criticado por especialistas: a guinada protecionista encampada por ele representaria um retrocesso no liberalismo americano e seria ineficaz em sua missão de recuperar os milhões de empregos perdidos pelo setor industrial dos EUA.

? Evidentemente, há alguns pontos positivos na agenda de Trump. E a característica mais marcante do seu governo será que os republicanos vão controlar o Congresso e a Casa Branca. Isso tornará mais fácil a aprovação de uma reforma tributária e de uma maior exploração do setor de energia, por exemplo ? afirmou Stan Veuger, economista no American Enterprise Institute (AEI) e professor visitante em Harvard.

Investimento em infraestrutura é ponto positivo

Um ponto importante da plataforma do presidente eleito é o investimento em infraestrutura, considerado positivo por economistas. O site de campanha de Trump não menciona qualquer número, mas, no início de agosto, o então candidato disse à rede Fox Business que gastaria ?pelo menos o dobro? do prometido por Hillary Clinton para o setor. A democrata falava em US$ 275 bilhões em cinco anos ? ou seja, Trump teria de gastar ao menos US$ 550 bilhões.

? É um consenso que o investimento em infraestrutura está em queda. O problema é que os dois partidos não concordam sobre como financiar isso. Mas, diferentemente de Obama, que vivia sob pressão do Congresso, Trump deve contar com mais boa vontade. Quando um presidente republicano pede a um Congresso republicano para gastar mais, é mais fácil ? disse Gary Burtless, economista do Brookings Institute.

A retórica protecionista, por sua vez, foi estridente durante toda a campanha. Trump foi categórico ao prometer renegociar os termos do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês), assinado em 1993 com México e Canadá e que o republicano classificou de ?pior acordo comercial da história dos EUA?. Ele também disse que irá abandonar de vez o Tratado Transpacífico (TPP, em inglês), com o Japão e outros dez países do Pacífico, ainda não ratificado pelo Congresso.

Além disso, Trump elegeu como alvo prioritário o maior parceiro comercial dos EUA, a China, que acusa de manipulação monetária e de práticas industriais anticompetitivas. O presidente eleito ameaçou levar suas denúncias à Organização Mundial do Comércio (OMC), além de sugerir a imposição de barreiras tarifárias. Segundo a retórica de Trump, acordos comerciais e a leniência de Washington com supostas práticas anticompetitivas de parceiros como a China foram responsáveis pelo desaparecimento de milhões de empregos industriais em solo americano nos últimos anos.

O discurso do republicano encontrou eco nos números do Departamento de Trabalho dos EUA, segundo os quais a indústria americana emprega hoje 12,2 milhões de trabalhadores, 37% menos que os 19,5 milhões de 1979 ? seu pico, atingido quando a população em idade ativa era 30% menor do que é hoje. Especialistas duvidam, porém, que o protecionismo seja capaz de trazer de volta os empregos perdidos.

? Acordos comerciais tiveram sua parcela de culpa na perda de empregos na indústria, mas grande parte dessa mudança é explicada por avanços tecnológicos. Mesmo que haja elevação de tarifas e que uma empresa como a Apple se veja forçada a produzir iPhones nos EUA, duvido que aqueles postos de trabalho voltariam. As companhias não iriam simplesmente abandonar os avanços tecnológicos que permitiram a produção com número menor de trabalhadores ? afirmou Burtless. ? Além disso, seria péssimo para a competitividade. A produção americana está muito integrada à de vários outros países. Se impusermos maiores tarifas sobre a China, não há garantias de que as fábricas voltariam para os EUA. Elas podem ir para um outro país que seja competitivo.

Embora o Congresso seja republicano, não será fácil para Trump convencer seus partidários sobre as virtudes de barreiras tarifárias, observou Veuger, do AEI.

? Não acho uma boa ideia, e os republicanos de ambas as casas do Congresso, que fizeram carreira se opondo a barreiras protecionistas, devem concordar comigo ? lembrou Veuger. ? A verdade é que aqueles empregos se foram para sempre. Veja o caso da Alemanha, um país de alta renda com economia altamente voltada para exportação. Mesmo ela perdeu postos de trabalho na indústria por razões tecnológicas, que vão além de tratados comerciais.

Em relatório divulgado ontem, a agência de classificação de risco Fitch afirmou que uma guinada protecionista americana ?teria implicações significativamente adversas para o investimento e o crescimento dos EUA e impulsionaria os preços, sobretudo se houver medidas retaliatórias de outros países ou as chamadas ?guerras cambiais??. A agência salientou que, embora o presidente tenha o poder de revogar acordos comerciais por meio de ordens executivas (similar à medida provisória) , ?na prática, o Congresso deve exigir participar em qualquer mudança.?

?Muitas coisas que ele falou são inexequíveis?

A Moody?s, outra agência de risco, afirmou que as medidas comerciais prometidas por Trump serão negativas para setores como os de automóveis, petróleo e tecnologia. No setor aeroespacial, por exemplo, a China comprou 13% dos US$ 119 bilhões exportados por empresas americanas em 2015. A China também adquire 20% das vendas globais de aeronaves comerciais de grande porte. Alguns setores podem se beneficiar, porém, como aqueles que sofrem dura competição de importados, a exemplo do de aço. Mesmo assim, essa vantagem seria ofuscada pela queda da demanda por aço em setores prejudicados, como o automotivo.

Frederico Sampaio, diretor de investimentos na Franklin Templeton, afirmou que o maior problema é a falta de previsibilidade daqui para frente:

? Não dá para acreditar muito em nada do que ele diz. Muitas das coisas que ele falou em campanha foram contraditórias e inexequíveis. Logo, há de haver certo grau de ceticismo. O grande risco de Trump é a falta de previsibilidade. Pelo menos, o primeiro discurso dele foi bem ponderado. Parece demais imaginar que ele fará tudo o que prometeu.