Cotidiano

Presídio em Minas adota novo modelo e consegue recuperar 60% dos presos

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BRASÍLIA ? No lugar de rostos cobertos e facões brandindo ameaças de decapitações dos companheiros em rebeliões pelo país, em uma cadeia de Paracatu (MG), a 200 quilômetros de Brasília, os 114 presos manuseiam agulhas de crochê para fazer arte e estiletes para construir capelinhas ou abajours de madeira. Sem registro de rebelião ou motim nos 10 anos de funcionamento, o novo modelo de gestão prisional tem conseguido cerca de 60% de recuperação dos presos com penas de até 38 anos por homicídio, estupro, tráfico, roubo, estelionato ou associação criminosa. Baseada em três pilares ? trabalho, religião e disciplina ? na APAC Paracatu (Associação de Proteção e Assistência a Condenados), em um prédio moderno construído e mantido pelos próprios presos, sem policiais armados, os detentos são responsáveis pela segurança dos outros detentos e trabalham para garantir renda para ajudar a família ou cobrir pequenas despesas na prisão.

Lá, livres das trancas nas celas e dormitórios, independentemente da pena ou da barbaridade do crime cometido, os presos são chamados de ?recuperandos?. Enquanto no sistema prisional convencional onde a situação é caótica cada preso custa ao estado cerca de R$ 4.500 por mês, um convênio com a Secretaria estadual de Defesa Social destina a cada preso da APAC apenas R$ 915.

Sem qualquer chance de ociosidade, trabalham de sol a sol nas oficinas de artesanato, padaria, cozinha, serralheria, marcenaria e estudam, fazem cursos profissionalizantes e, no horário de descanso, se juntam na quadra de esportes para tricotar, literalmente, e trocar ideias sobre a confecção de delicados caminhos de mesa, chapeuzinhos de bebê, tapetes e galinhas para guardar ovos na cozinha. Todos foram transferidos de presídios tradicionais onde já cumpriram parte da pena e tinham bom comportamento, um dos pré-requisitos. A autorização de ingresso é feita pelo juiz local, após pedido por escrito do detento, mediante assinatura de um termo em que se comprometem a seguir rígidas normas de disciplina.

? Os presos chegam aqui como bichos, de cabeça baixa e as mãos para trás. No portão a gente tira as algemas, a roupa laranja, levanta o queixo dele e fala: olha reto! Ele anda uma semana emborcado e olhando pra baixo, mas aos poucos vai voltando a andar como gente! Borracha e paulada na cabeça não deu conta de resolver. Esse método é um novo pacto ? diz o diretor da APAC, Eurípedes Tobias.

A instituição prisional funciona em parceria com a Pastoral Carcerária e um grande número de voluntários de Paracatu. Há 14 funcionários contratados e os recuperandos se revezam em múltiplas tarefas e abatem, com o trabalho e o estudo, tempo de duração da pena. O prédio, com higiene e pintura impecáveis, foi construído em um terreno doado pela Igreja Católica. O estado repassou R$1,1 milhão, e a sociedade paracatuense doou outros R$700 mil, num total de R$1,8 milhão para um prédio que mais parece um hotel, com dois pavimentos, auditórios e consultório odontológico. Um sem número de recuperandos exibe sorrisos metálicos pelos aparelhos nos dentes.

? Trabalhamos a autoestima e a identidade dos recuperandos que vem para cá. Tinha gente que não tinha dente e colocou ? diz a encarregada administrativa Vanessa Martins Pinheiro.

Com aparência franzina ? pesa cerca de 40 quilos ? Vanessa exerce grande poder de disciplina sobre os presos e, apesar da aparência frágil, exerce tarefas masculinas, como a escolta de presos a consultas e audiências fora da cadeia.

? Os brabão da cadeia que chegam aqui, com a força da cabeça, a Vanessa faz ajoelhar e chorar , mostrando a realidade ? brinca o detento Eurípedes Tobias.

O ex-recuperando Márcio Felipe, que cumpriu pena de cinco anos por assalto, hoje é um dos cinco ex-presos integrados ao quadro de funcionários, com carteira assinada, que trabalham como inspetores de segurança e supervisores de oficinas.

À noite, a segurança é feita por seu Divino, inspetor de segurança , um velhinho de 63 anos cuja obesidade o impediria de correr atrás de algum eventual fugitivo.

? Imagina eu, um velho de 63 anos, cuidando de 114 presos? Mas eu me sinto mais seguro aqui dentro do que lá fora ? diz seu Divino.

Os corredores do prédio com fachada moderna ? mais parece um hotel ? são impecáveis e as paredes pintadas de azul e branco tem a tinta renovada pelos presos a cada ano. Em cada cela ou dormitório, que fica com os cadeados e grades sempre abertos, cabem nove detentos que cuidam da limpeza e organização. Camas bem arrumadas, tapetinho na entrada e debaixo da pia. Para estimular a organização, a cela mais organizada do mês ganha um troféu. E a mais bagunçada ganha um porquinho preto na entrada.

Um dos mestres do crochê da prisão, Talison Melo Monteiro organiza, com a irmã, a construção de um site para vender as peças de artesanato em linha e madeira que produzem. Vai se chamar ?Artesãos da APAC Paracatu?. Apesar das brincadeiras de que é alvo, Talison não acredita que sua masculinidade vai ser afetada por fazer crochê , uma atividade considerada feminina.

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? O artesanato que você faz não é o que vai definir a pessoa. A crise está braba, temos que vender o que produzimos para ajudar a família ? diz Talisson.

O terreno, doado pela Igreja Católica local, tem uma horta, centro de artesanato, oficina onde os presos constroem cadeiras escolares, umas biblioteca e escola para cursos profissionalizantes. Toda última sexta-feira do mês, os detentos organizam uma festa para comemorar os aniversariantes, com participação de familiares.

? Na construção do prédio só compramos as telhas, o resto tudo foi produzido aqui, das grades aos móveis. Os que cumpriram pena aqui, ajudaram a construir o prédio e trabalham nas nossas oficinas oferecendo serviços para a comunidade. Eles saíram como eletricistas, serralheiros, pintores ou encanadores. Não oferecem mais risco para a sociedade. Depois que foi criada a APAC, Paracatu nunca mais teve rebelião no presídio lá de cima, porque os presos tem expectativa de vir para cá e melhoram o comportamento lá também ? diz Eurípedes Tobias.

Os presos contam com uma televisão no refeitório e na hora do almoço, assistem ao noticiário das rebeliões pelo país afora. As imagens de cabeças decapitadas e corpos amontoados no pátio são usadas na laboterapia, que o gerente administrativo Silas Porfírio e Vanesa Pinheiro chamam de ?terapia de realidade?.

? Mostramos o horror nas prisões como o caminho que eles não devem trilhar. Eles chegam aqui achando normais os crimes que cometeram lá fora. Nosso papel é desconstruir essa concepção e mostrar que dependendo do caminho que escolherem eles podem ser vítimas das atrocidades e também morrer ? diz Silas.

Na APAC, os recuperandos também contam os dias para concluir a pena, mas mesmo com a restrição de liberdade, concordam que voltar para o presídio seria sair do céu para ir ao inferno. Com 25 anos, Danilo Pereira foi condenado a 27 anos por assassinato e outros crimes. Já cumpriu cinco anos e, com a progressão, em nove anos sai do regime fechado e vai para o semiaberto. Ele conta que desde os 16 anos vive o inferno do mundo do crime. Ele passou dois anos na Febem. Saiu aos 18 e aos 19 voltou para a cadeia. Hoje é professor em um curso que se chama ?viagem do presidiário?.

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? Lá no presídio, eu era humilhado, e aqui sou respeitado e estou me recuperando. Estou nessa vida desde os 16. Entrei ladrão e saí bandido na Febem, que é uma faculdade do crime ? diz Danilo.

O brasiliense Wesley Pereira matou três pessoas e tem a maior pena entre os recuperandos: 38 anos. Já cumpriu pena em presídios convencionais de Goiânia, Unaí e Paracatu. Chegou há dois meses na APAC e ainda está se adaptando as duras regras de disciplina.

? O que me tirava fora de mim era a droga. Aqui trabalho e estudo. Sou quase um analfabeto, mas já estou na terceira série e quero terminar aqui os estudos. Se der tudo certo, em 2024 eu passo para o semiaberto ? diz Wesley Pereira.

Dono de uma das celas mais organizadas ? se você tropeça no tapete ele vai atrás e arruma ? Murilo Neiva é o melhor exemplo da recuperação na APAC. Condenado a 21 anos por latrocínio, ele cursa o terceiro período de Direito na Faculdade Atenas. A faculdade é particular, e ele chegou a ser selecionado pelo FIES. Mas sua família preferiu pagar as mensalidades para ele ?sair sem dever nada?.

? Na faculdade, eu apresentei um trabalho sobre o índice de reincidência e recuperação na APAC e no sistema prisional comum. O que a APAC recupera, o comum reincide. No final, eu me expus para a turma e disse que era recluso. Não senti preconceito e fui muito bem aceito ? conta Murilo Neiva.

Outra estória bem sucedida é a do ex-recuperando Daniel Luiz da Silva. Condenado a 37 anos em 27 processos, ele hoje é coordenador da Fraternidade Brasileira de Assistência a Condenados, um órgão que dá consultoria as 50 APACs existentes no país e participou de um encontro em Rimini, na Ítalia, onde levou a experiência brasileira, depois copiada com a construção de duas unidades APACs na cidade italiana.