Cotidiano

Presidente do Louvre diz que museu deve perder até 2 milhões de visitantes neste ano

PARIS ? O Museu do Louvre, o primeiro do mundo em termos de frequência, deverá perder até cerca de 2 milhões de visitantes este ano, o equivalente a mais de 20% do total de seu atual público. A queda, estimada pelo presidente da célebre instituição francesa, Jean-Luc Martinez, 52 anos, é creditada principalmente aos efeitos colaterais dos recentes atentados e da constante ameaça terrorista na França. Para conter este decréscimo, além de reforçar a segurança local, o museu intensificou as ações de divulgação de sua imagem no exterior. Foi lançado, inclusive, o projeto de uma grande exposição no Rio e em São Paulo durante os últimos Jogos Olímpicos, mas, apesar dos esforços, sem alcançar concretização. Os brasileiros são, hoje, a quarta nacionalidade estrangeira de maior frequentação do museu, atrás dos italianos, chineses e, no topo, os americanos. A média de tempo de visita do público brasileiro, de 3h10min de duração, está, inclusive, acima da média geral, de 2h42min.

Martinez enfrentou ainda este ano, em junho, o perigo de inundação do Louvre por causa da elevação do nível do rio Sena derivada de fortes chuvas, e se viu obrigado a fechar excepcionalmente o museu e colocar em urgência 150 mil obras ao abrigo. Mas nem só de más notícias é feito seu atarefado cotidiano na administração de 2.200 pessoas. Em julho passado, inaugurou a primeira grande reforma promovida no museu desde a construção da pirâmide de vidro e metal projetada em 1989. As obras, ao custo de 53 milhões de euros, modernizaram toda a área de recepção ao público sob a pirâmide, e deram maior visibilidade ao Pavillon de l?Horloge, dedicada à história do museu quando ainda era uma fortaleza, depois transformada em palácio real. E há cerca de dez dias, Martinez esteve nos Emirados Árabes, supervisionando a finalização do Louvre Abu Dhabi, projeto monumental do arquiteto francês Jean Nouvel construído sobre uma ilha natural ? que terá ainda o museu Guggenheim de Frank Gehry e um campus da Universidade de Nova York -, previsto para abrir suas galerias no início de 2017. Já em Paris, prepara as três próximas grandes exposições na matriz: Vermeer, em 2017; Delacroix, em 2018, e Leonardo da Vinci, em 2019.

Filho de um pai carteiro de uma mãe zeladora, o menino Jean-Luc morava em Rosny-sous-Bois, no subúrbio parisiense de Seine-Saint-Denis, e nunca havia pisado em um museu até os 11 anos de idade até descobrir o Louvre numa visita escolar, em 1975. Vislumbrar Vitória de Samotrácia, escultura da Grécia Antiga que ocupa um lugar de destaque numa das escadarias do museu, mudou sua vida. Arqueólogo e historiador da arte, Jean-Luc Martinez foi nomeado em 3 de abril de 2013 para o comando do Museu do Louvre, onde, em seu vasto gabinete, recebeu o GLOBO para uma conversa. ?Sou um daqueles que acreditam que o belo pode salvar o mundo?, diz. Links Louvre

Os atentados e o clima de ameaça terrorista afetaram o turismo e também os museus na França. Como o Louvre tem enfrentado esta situação?

De fato, registramos uma queda de frequentação que pôde ser quantificada no primeiro semestre, de janeiro a julho deste ano, numa perda de 22%. Em 2015, tivemos 8,7 milhões de visitantes, e tudo indica que este ano deveremos perder entre 1,6 milhão e 2 milhões de público. Aproximadamente, deveremos ficar por volta dos 7 milhões de visitantes em 2016. Tivemos uma queda importante de visitas de grupos escolares franceses. Com o risco de atentados, o governo limitou fortemente as excursões de alunos. A segurança do Louvre foi reforçada, com patrulhas militares e policiais regulares. Os controles de acesso também foram reforçados com pórticos de detecção de metais, e foram instalados cubos fixos externos para impedir a invasão de veículos. Pode-se dizer que a segurança do Louvre hoje é satisfatória. Obviamente o risco zero não existe, mas o governo tomou todas as medidas necessárias para dar as melhores condições à visita.

Os brasileiros são a quarta nacionalidade mais numerosa no Louvre, e ocupavam o 12° lugar há dez anos. Como as diferentes nacionalidades reagiram a este novo contexto?

Perdemos uma parte do público dos Estados Unidos, que é a primeira nacionalidade estrangeira em número de visitantes. Talvez mais sensível à questão dos atentados, o público americano teve uma forte queda, entre 28% e 30%. Os chineses também diminuíram bastante. E o público japonês praticamente desapareceu. Não tenho ainda os dados do público brasileiro, mas temos a impressão de também caiu em relação ao ano passado, e penso que a atual crise econômica do país e também a Olimpíada do Rio possam ter colaborado para isso.

Trata-se algo excepcional ou já se viu situação semelhante no passado?

O Louvre e demais museus franceses já sofreram uma queda de público ainda mais importante, no rastro dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Naquela ocasião, o Louvre perdeu 36% de seus visitantes, bem maior do que os 22% já registrados deste ano. Além do reforço da segurança aqui, também fazemos a diplomacia cultural, ou seja, ir buscar o público em seu próprio país para promover o museu. Organizamos três exposições nos EUA: Hubert-Robert, em Washington; Valentin de Boulogne, em Nova York, e Edme Bouchardon, em Los Angeles. No caso da China, será inaugurada em dezembro, no Museu Nacional de Pequim, uma exposição sobre a história do Louvre. Esta mesma mostra será levada depois para Hong Kong. Faremos uma ação também no Japão, em 2018, em torno de uma exposição sobre o tema do retrato.

E no Brasil?

Nós tentamos este ano, por ocasião dos Jogos Olímpicos, fazer uma grande exposição em São Paulo e no Rio. Pensamos num primeiro projeto em torno do esporte, mas que depois abandonamos. O segundo projeto visava apresentar um conjunto das coleções do Louvre no Brasil. Mas fracassamos coletivamente, junto com nossos parceiros brasileiros. A situação no Brasil não é satisfatória, era preciso encontrar patrocinadores, mecenas, e não conseguimos fazer a montagem financeira do projeto. Não deu desta vez, mas tenho esperança de que consigamos fazer algo no futuro, nesta mesma lógica, de ir ao encontro do público brasileiro. Queremos dar este primeiro passo, para que depois o público venha e volte ao Louvre em Paris. No ano que vem, haverá uma temporada da Colômbia na França, e vamos acolher no Louvre obras provenientes de museus colombianos. Além do Brasil, o público colombiano, chileno ou argentino é cada vez mais numeroso no museu. Queremos tornar este desejo pelo Louvre mais presente no mundo.

Como está a construção do Louvre Abu Dhabi, este mega projeto de quase 1 bilhão de euros, sendo 400 milhões destinados, ao longo de 30 anos, para o uso da marca Louvre?

O projeto começou no início de 2013, e as obras estão prestes a terminar. Estive lá há dez dias, e é uma construção realmente espetacular, magnífica. Será certamente um dos maiores museus do mundo. E não se trata apenas do gesto arquitetural, é um grande Jean Nouvel, uma de suas obras-primas. Falta praticamente finalizar os entornos, porque está no meio da areia. É preciso construir as vias de acesso, um estacionamento, ajeitar as paisagens etc. E o subsolo, toda a parte dos ateliês, também ainda não está concluído. Voltarei em novembro para uma nova visita de avaliação. A data de inauguração é uma decisão política do governo dos Emirados Árabes. Potencialmente, poderá ser aberto no início de 2017. Mas se eles não decidirem pela inauguração até abril, deverá ficar para o outono, por causa do calor. São eles que vão decidir a data.

Como vai funcionar?

Vai se ver três coisas diferentes. Haverá exposições temporárias de três meses, de temas variados de coleções oriundas do mundo inteiro. Também terá uma sala consagrada exclusivamente para crianças, com coleções do Louvre e de Abu Dhabi. E se terá as coleções permanentes de Abu Dhabi, com cerca de 900 obras. Serão 600 obras locais, e outras 300 emprestadas por um ano ou mais por museus franceses, sendo uma centena delas da coleção do Louvre. É um projeto de encontro cultural entre coleções dos Emirados e de museus franceses, um tipo de colaboração inédita no mundo.

Como o senhor viu as polêmicas surgidas no início por causa da reputação dos Emirados Árabes em relação ao respeito dos direitos humanos e das condições do trabalhadores imigrantes?

Na França, gostamos bastante destas polêmicas, mas é também uma das virtudes da democracia de colocar as questões sobre a mesa. Na polêmica surgida em 2007 havia várias questões perfeitamente justificáveis. Se questionava se não haveria risco de conflito de interesse no fato de experts franceses trabalharem para uma outra nação, o que foi resolvido pela transparência na nomeação de curadores e de suas funções. Houve a polêmica sobre a mercantilização da arte. Sinceramente, considerei isso menos polêmico. Nós registramos a marca Louvre. Hoje, no mundo de globalização comercial em que vivemos, se pode fazer um uso fraudulento da palavra Louvre, precisávamos providenciar esta proteção. Não somos uma empresa comercial e não temos nada a vender, mas não vejo porque teríamos de nos envergonhar de vender nossa expertise cultural. Acho completamente normal valorizar e vender a expertise cultural dos museus franceses. Houve ainda a questão da escolha do país e da região. Será o primeiro museu universal em terras do islã. É uma aposta diplomática da França, e também muito audacioso da parte dos Emirados Árabes. Se falou muito se não iria haver algum tipo de censura. Acho que existe muito desconhecimento, as pessoas confundem os Emirados com outros países da região. Acredito que a abertura deste museu permitirá lutar contra um certo número de preconceitos. Nos Emirados Árabes as mulheres dirigem carros, o uso do véu não é obrigatório, a diversidade religiosa é respeitada. Há uma imagem que é caricatural. E também se atentou para que fossem respeitados os direitos dos trabalhadores, com controles feitos por empresas externas nos canteiros de obras. À parte isso, certamente há denúncias sobre condições dos trabalhadores imigrantes, neste como em outros países.

Que balanço o senhor faz destes primeiros meses após a nova grande reforma do Louvre?

Estou contente com o que foi feito, mas sempre há coisas para melhorar. Meus predecessores haviam construído o Grande Louvre, um projeto magnífico, mas limitado ao desenvolvimento das coleções no interior do palácio. O objetivo era de que as coleções conquistassem o conjunto do palácio. Foi uma revolução, com a construção da pirâmide, da entrada única, da escolha da arquitetura contemporânea. Meu desejo agora foi dar um novo fôlego ao museu. As coleções se apossaram de todo o palácio, e agora o que fazemos? Foi o momento de dizer que o segundo Grande Louvre consistia em melhorar a recepção ao público. Nos anos 1980-90, se visou bastante as coleções, e cabe agora servir o público. A ideia não foi a de acolher mais, mas melhor. Reduzimos o tempo de espera na fila, fizemos bilheterias e vestiários mais confortáveis e modernos. Hoje vendemos entradas online com faixas horárias que garantem o acesso em menos de trinta minutos, e está funcionando. Houve uma melhora geral notável do conforto da visita. Também pode ser considerado um sucesso a reforma do Pavillon de L?Horloge e o desejo de tornar o museu mais legível, com maquetes e outras inovações. O palácio do Louvre é imenso, e os visitantes passam em média mais de três horas no museu. Criamos uma visita de boas-vindas, que funciona muito bem em inglês, e um pouco menos em francês e em espanhol. Mas de uma forma geral tornamos a história do palácio mais fácil de ser compreendida.

Quando o senhor assumiu o Louvre, se disse aqui na França que seria o fim da colaboração com a arte contemporânea, algo incentivado por seu predecessor. Mas se viu recentemente, por exemplo, a intervenção do artista JR na pirâmide do Louvre, e no auditório do museu tanto se pode ouvir Bach (1675-1750) como o saxofonista contemporâneo John Zorn. O senhor defende uma nova forma de parceria?

Sempre digo às minhas equipes que parte de nosso trabalho é o de se colocar no lugar do visitante e se perguntar o que ele espera do museu. Por que as pessoas vêm ao Museu do Louvre? Não é para ver arte contemporânea. O visitante vem aqui para ver um palácio que está ligado à história da França, e que não era um museu em sua origem. Os ícones dizem algo da natureza de nossas coleções, como a Vênus de Milo ou a Mona Lisa. Se vem aqui ver obras-primas da arte europeia, mesmo que, obviamente, mostremos também a diversidade das culturas do mundo, com obras da Antiguidade oriental, de arte islâmica e de pinturas americanas – uma ocasião de lembrar que temos arte da América Central e Latina exposta no Louvre. Quem somos nós? Um palácio histórico com coleções de arte antiga. Isso não quer dizer que a arte contemporânea não tenha nenhum lugar no Museu do Louvre, mas que não devemos nos enganar de mensagem e de comunicação. O Louvre sempre foi um museu dos artistas, e foi inclusive aberto durante a Revolução Francesa para reformar o gosto artístico. O que me interessa é a relação que a arte contemporânea pode ter com o museu, no sentido de enriquecer o olhar. JR veio, nos ouviu, e propôs algo que correspondia muito bem ao que é o Museu do Louvre. Na Pequena Galeria temos agora uma exposição em torno do tema do corpo e da dança, e pedi ao coreógrafo Benjamin Millepied, que hoje tem sua companhia em Los Angeles, para nos ajudar. Ele gravou, por exemplo, um audioguia, e é interessante ouvir como um coreógrafo enxerga uma exposição. A arte contemporânea tem seu lugar aqui na condição de que mergulhe suas raízes nas coleções de arte antiga, e que nos permita enxergá-las de outra forma. É importante este ligação com o lugar. Nós não somos o Centro Pompidou nem o MoMA.

Nesta ótica que foi anulada a apresentação aqui de Patti Smith?

Com os artistas vivos sempre há um diálogo. Perguntamos: ?O que você quer fazer no Museu do Louvre??. Se é para fazer aqui o que se pode fazer em outro lugar, então eu digo não. INFOCHPDPICT000062067234

O senhor também diminuiu o número de grandes exposições no Louvre, e transferiu a enorme mostra do pintor espanhol Vélazquez (1599-1660) para o Grand Palais.

Nós não somos um espaço de grandes exposições, como o Grand Palais, mas sim um museu. E um museu se define por suas coleções permanentes. Não quero que o evento tenha primazia sobre a essência do museu. Destes 8,7 milhões de visitantes anuais, cerca de 80% vêm só pelas coleções permanentes. Talvez o defeito da cultura midiática em que vivemos é que se fala apenas dos eventos e acontecimentos. Não se fala do trem que chega na hora, mas do trem que atrasa. Não se fala do Louvre, mas das grandes exposições. A ideia simples, mas boa, é fazer com que não haja contradição entre nossas exposições e o museu. Isso para que o visitante estrangeiro que venha ver a Gioconda diga: ?Mas há também uma exposição sobre Leonardo da Vinci?. E aquele que venha ver a exposição de Leonardo da Vinci se interesse também por outras obras da pintura italiana. É uma questão de melhor articulação. Se enviamos Velázquez para o Grand Palais é porque o Louvre não era o local adequado para receber a exposição. Além do que, os espaços de exposição do Louvre não são de luz natural, e eu queria que as obras-primas de Vélazquez fossem admiradas em luz natural, que é o caso do Grand Palais.

Como serão as próximas grandes exposições em preparação pelo Louvre?

Nunca houve exposição Vermeer na França, parece incrível, mas é verdade. Ele é um pintor muito raro, com apenas umas três dezenas de obras autenticadas, e o Louvre tem a sorte de possuir duas delas, A Rendeira e O Astrônomo. Mais uma vez, trata-se de estabelecer uma relação com as coleções do museu. Foi a ocasião de trabalhar com nossos colegas de Dublin e de Washington, que também possuem telas de Vermeer, e de tentar agrupar um pequeno núcleo de obras. Será também a oportunidade de mostrar a importância da coleção de pintura holandesa do Louvre ? logo depois da pintura francesa e italiana -, que não é muito conhecida. A exposição é um formidável vetor midiático. Os reis Luís 15 e Luís 16 colecionaram com avidez a pintura holandesa, que estava muito na moda na França do século 18. Já Leonardo da Vinci se impõe também porque estaremos em 2019, e contrariamente ao que pensam muitos italianos, os franceses não roubaram a Mona Lisa. Foi o rei François I que convidou Da Vinci para vir a França, que veio com seus quadros. Se as telas estão aqui, é porque ele as presenteou ao rei da França. Só queria retificar as mentiras que ouço ao longo do dia, porque os bateaux-mouches que passam aqui no rio Sena, sob minha janela, anunciam: ?Estamos no Museu do Louvre, o museu que roubou a Gioconda?. E em 2019 se festeja o quinto centenário da morte de Leonardo da Vinci, em 1519, na França. Será a ocasião de fazer a exposição que ninguém pode organizar, que é ?Leonardo pintor?. Há sempre muitas exposições sobre todos seus aspectos, o sábio, o engenheiro militar, o matemático, seus manuscritos, como a que foi montada no ano passado em Milão. Ele é uma artista total do Renascimento. Mas a maior coleção do mundo de pinturas de Leonardo da Vinci está no Louvre, e somos o único museu a poder fazer isso. E ousamos sonhar e esperar que uma maioria dos quadros de Leonardo da Vinci será pela primeira vez reunida, num grande acontecimento que nos permitirá também rever nossa coleção de pintura italiana.

A pedido do presidente François Hollande, o senhor elaborou no ano passado um relatório com 50 propostas para lutar contra o tráfico de obras de arte no mundo, que hoje servem em grande parte ao financiamento do Estado Islâmico (EI). De lá para cá, houve avanços neste combate?

As coisas avançam. Em março de 2015, o presidente François Hollande veio ao Louvre com a diretora-geral da Unesco, Irina Bokova, fazer uma declaração de apoio aos países em guerra, e infelizmente foi também quando ocorreu o atentado no Museu Nacional do Bardo, na Tunísia. Nesta ocasião, ele me solicitou este relatório com propostas do que poderia ser feito mais praticamente, e que depois defendeu na reunião do G7 (o grupo das nações mais industrializadas do mundo) e na ONU. Em Nova York, ele anunciou a criação de um fundo de dotação internacional para a proteção do patrimônio. A iniciativa, da França e dos Emirados Árabes, será efetivada numa conferência internacional nos próximos dias 2 e 3 de dezembro, em Abu Dhabi. As questões jurídicas também avançaram nos níveis francês e europeu. A possibilidade de oferecer refúgio às obras foi inscrita na legislação francesa. Os ministros da Cultura europeus se reuniram para viabilizar a partilha de banco de dados e o reforço da fiscalização nas fronteiras. Recentemente, a alfândega francesa descobriu e bloqueou obras roubadas da Síria, e graças à lei votada este ano propusemos que sejam exibidas pelo Louvre na espera que um dia possam ser devolvidas ao seu país de origem, quando a guerra acabar. Também foi proposto utilizar exposições para sensibilizar o grande público. Desde a destruição dos Budas de Bamiyan e as explosões de Palmyra, houve uma emoção popular. Deve-se lembrar que não se trata apenas de um problema de pedras antigas. São os mesmos que matam as pessoas que querem matar sua memória e seu passado. Deve-se sair do debate moral de bons e maus, e se conscientizar de que podemos todos ser receptadores. É uma forma de responsabilidade coletiva o tráfico ilegal de antiguidades. Não são simplesmente os vendedores que se deve denunciar, mas também os compradores. E os museus têm um papel nisso, na definição de uma política de aquisição. Devemos sensibilizar o público nesta questão da origem das obras. É o mesmo com o tráfico de animais em vias de extinção. A responsabilidade é partilhada por quem abate o elefante, quem vende o marfim, e quem compra uma pulseira de marfim. Vamos fazer uma exposição no Louvre-Lens, a partir de 1° de novembro, que se chama ?A história começa na Mesopotâmia?, sobre o patrimônio antigo do Iraque e da Síria atual. E em 14 de dezembro, será inaugurada no Grand Palais a mostra ?De Bamiyan a Palmyra?, que será mais um acontecimento do que uma exposição. Será uma exposição de sensibilização, com entrada gratuita. Serão apresentadas obras do Louvre, mas sobretudo imagens 3D e digitais, feitas a partir de drones que sobrevoaram os sítios ameaçados. Será um espetáculo imersivo e uma experiência de restituição de quatro sítios: Khorsabad, no Iraque do norte; Palmyra, na Síria; Damas, com a Mesquita dos Omíadas, e o Krak dos Cavaleiros, também na Síria.

Antes de o senhor assumir o Louvre, o jornal ?New York Times? escreveu que havia sido cogitado um rompimento com a tradição e a nomeação de um presidente não francês, uma vez que o museu depende cada vez mais dos visitantes estrangeiros e de suas atividades internacionais. É possível, um dia, um presidente do Louvre estrangeiro?

Francamente, não creio. Na prática, é possível, pois o presidente do Louvre é nomeado em Conselho de Ministros, sob proposição do ministro da Cultura ao presidente da República. É verdade que o Museu do Louvre possui um forte papel diplomático, foi feito por reis, por presidentes da República; é um tipo de vitrine da diplomacia francesa. É verdade que é frequentado entre 70%-75% por estrangeiros, e que é também uma vitrine da maneira que o mundo é presente na França. Mas é verdade também que é uma vitrine da forma como a França enxerga o mundo. Os museus não se parecem. O Metropolitan, de Nova York, é um museu universal, como o British Museum, o Museu do Vaticano, o Hermitage (São Petersburgo). Eles têm todos uma história particular da maneira como um país, uma cultura, olha para o mundo. É possível que o Louvre tenha um presidente estrangeiro, porque há estrangeiros que conhecem muito bem a cultura francesa. Meu antigo colega do British Museum, Neil MacGregor, fala muito bem francês, e o atual colega, Hartwig Fischer, é um alemão que fala francês como você e eu. São pessoas que conhecem perfeitamente a cultura francesa e que poderiam muito bem dirigir o Museu do Louvre. Talvez o único limite seja de que os museus franceses mantêm uma relação com a política e a administração pública muito diferente se comparado aos demais países. O diretor do British Museum depende dos trustes do museu. As coleções do museu não pertencem à nação inglesa, mas aos trustes. O modelo anglo-saxão tem um funcionamento de interesse público, mas administrado de forma privada. O diretor do Metropolitan Museum pode vender sua coleção. O presidente do Museu do Louvre não pode, porque as coleções pertencem à nação francesa, são inalienáveis. O Estado confia ao Louvre a guarda de uma parte da coleção que pertence à nação. Os proprietários das coleções do Louvre são os cidadãos franceses. Esta relação particular faz com que o diretor do Louvre seja um funcionário francês, porque ele é o representante do Estado.

Qual a lembrança de sua primeira visita ao Louvre, em 1975, aos 11 anos de idade?

Nasci em Paris, de família de origem espanhola, mas sou francês de quinta geração. Tive uma infância feliz, mas nos anos 1960, minha família deixou o centro de Paris para o subúrbio. Para nós foi uma melhora de vida, eram condições bastante modestas, mas era a primeira vez que meus pais tinham uma sala de banho, por exemplo. Era feliz nesta região. Digo isso porque hoje na França há uma certa visão ao mesmo tempo negativa e pobre dos subúrbios, mas na época tinha uma vida bastante agradável. Era uma ambiente contemporâneo. Estas cités foram construídas na periferia de antigas aldeias. Onde morava, tudo datava do começo dos anos 1960-70. Não havia um único imóvel antigo. E na primeira vez que me levam ao museu, é no Louvre. É tradicional na França durante o programa de História na escola, quando se estuda o Egito e a Grécia antigos, que se leve os alunos ao Louvre. Nunca vinha ao centro de Paris, exceto uma vez por ano para ir ao cinema Le Rex, ver desenhos animados de Walt Disney. E tudo me surpreendeu, o palácio, as edificações antigas. E experimentei o que pode ser a força de Vitória de Samotrácia, hoje um pouco enfraquecida, porque a entrada se dá pela pirâmide, e antes era nela o ponto de partida da visita do museu. Há esta imensa escadaria, com esta escultura. Ainda hoje é um sentimento impressionante. O Louvre é um museu à parte por isso, não são simplesmente obras excepcionais, mas uma construção e mise en scène excepcionais. Para mim, o Louvre foi também a descoberta da profundeza da história, da Antiguidade. Sou um daqueles que acreditam que o belo pode salvar o mundo. O hábito de ver coisas belas pode promover mudanças. E, sobretudo, ao notar que a cultura dos outros nos supera. Há um risco em se viver encerrado. O modelo francês é fundado no contrário do comunitarismo: pensar que se pode ser francês de origem espanhola, mas ser francês e pertencer a uma nação. Isso é muito francês. E o museu contribui para isso, porque nele você se dá conta de que o outro existe, outras culturas, outras civilizações. Como criança, fiquei fascinado com isso, e foi na mesma idade em que nos interessamos aos dinossauros. E Vitória de Samotrácia é tudo isso. Em 2014, promovi a restauração deste monumento, que foi uma aventura bastante complicada. Foi quase como fechar um ciclo pessoal para mim.

Qual a experiência mais surpreendente vivida nestes anos na direção do Louvre?

O mais difícil e talvez o momento que mais me surpreendeu de forma negativa foi a enchente do rio Sena, que sofremos no começo de junho. Foi muito tenso. Sabia que este risco existia, mas vivê-lo é uma outra coisa, algo extremamente complicado. E o melhor momento surpreendente foi o mesmo episódio, porque vi a extraordinária mobilização dos funcionários, o amor que eles têm por este museu. Cerca de 400 pessoas permaneceram toda a noite aqui para salvar as coleções. É algo que marca para sempre.