Esportes

Pequim-2008 viu surgir o fenômeno Bolt e a reafirmação de Phelps

Manhã do domingo 10 de agosto, segundo dia de competições dos XXVIX Jogos Olímpicos de Pequim. Nas arquibancadas do Cubo d’Água, o cinematográfico templo retangular erguido para abrigar as provas de natação, um torcedor bronzeado chamava menos atenção do que o enxame de seguranças que o acompanhava. Um deles, de bermuda e pasta na mão, era o que menos olhava para a piscina.

O torcedor simpaticão, empolgado feito colegial e trocando high fives com vizinhos de arquibancada, era o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Ninguém lhe prestou muita atenção, nem ele estava ali para isso. Como as demais 17 mil pessoas acomodadas no interior da arena que permitia a passagem da luz natural, Bush fora tietar alguém bem mais famoso e popular do que ele em Pequim — Michael Phelps.

Naquela manhã, o americano anfíbio Phelps dava início à sua insana escalada rumo à imortalidade olímpica. Iria conquistar oito medalhas de ouro numa mesma edição dos Jogos. Para isso, entre eliminatórias, semifinais e finais, ele teria de competir 17 vezes em oito dias. A maratona começava pela prova mais majestosa e dura da natação.

Os 400 metros medley são sempre eletrizantes. Transcorrem com grandes variações, pois dependem da competência de cada nadador nos quatro estilos — borboleta, costas, peito e nado livre. Ora alguém está na retaguarda do pelotão, depois passa à liderança na troca de estilo, na virada seguinte tudo pode mudar de novo. Essa é a prova na qual o brasileiro Ricardo Prado foi campeão mundial nos anos 1980 e Thiago Pereira conquistou a medalha de prata nos Jogos de Londres-2012.

Phelps acabou com o suspense batendo o próprio recorde mundial e deixando aos tubarões que ficaram para trás a disputa pela prata e bronze. Quando subiu ao lugar mais alto do pódio, o Cubo inteiro levantou-se aos primeiros acordes do hino americano, e tudo parecia seguir a coreografia com Phelps e compatriotas na arquibancada de mão no peito. De repente, antes do grand finale, a trilha do hino engasgou. Logo na China! E justo na presença de George W. Bush, que nesse instante-relâmpago deixou de ser visto como torcedor e passou a mandatário que teve o hino esquartejado.

Bush foi craque, não apenas ali como nas três outras modalidades esportivas que decidiu acompanhar em Pequim. Foi muito melhor torcedor do que presidente. A receita? O que conta, dentro de um ginásio, arena ou estádio é autenticidade pessoal, empatia com o esporte, sorte e despojo da liturgia do cargo. Não há cerimonial capaz de ensinar a um chefe de Estado ou de governo, ditador ou monarca como se comportar e ao mesmo tempo se divertir nesse país estrangeiro chamado Jogos Olímpicos.

Até porque tensões diplomáticas nunca faltam, e não seria diferente nesta Olimpíada em que o mundo passou a conhecer a nova China, e vice-versa. A épica cerimônia de abertura que transformara massa humana em arte de massas mal havia sido digerida por 3,5 bilhões de telespectadores quando uma notícia não esportiva se espalhou por Pequim: “Americano assassinado na Olimpíada”.

A vítima se chamava Todd Bachman e era sogro do técnico da seleção masculina de vôlei dos EUA. Mas não fora esfaqueado na rua por ser americano. Ele e a esposa, que ficou gravemente ferida, nem estavam numa arena dos Jogos, flanavam como turistas a alguns quilômetros da cidadela olímpica quando foram assaltados sem motivo ideológico por um chinês anônimo. Mas o estrago estava feito.

“Vivemos num mundo em que coisas acontecem”, explicou o Secretário-Geral do Comitê Organizador do país que construiu uma Grande Muralha por quase dois milênios para se proteger de inimigos externos. Ele encerrou a explicação com uma garantia que nenhum dirigente sensato ou de nação democrática daria :“Asseguramos que nada semelhante voltará a ocorrer”. De fato não aconteceu, mas não terá sido pela eficácia do controle do regime sobre seu povo.

Interessava mais que tudo para a China emergente do presidente Hu Jintao a disputa pelo maior número de medalhas de ouro. Leia-se, derrotar a supremacia dos Estados Unidos como potência olímpica — se não em número total de pódios, pelo menos no que conta mais: o lugar mais alto.

Em Atenas, quatro anos antes, o colosso chinês de apenas cinco participações olímpicas (o país estreara em Los Angeles ) já havia chegado perto: ficaram faltando só quatro ouros para empatar com os 36 conquistados pelos americanos. Agora se apresentava com um exército de 639 atletas, dois terços dos quais novatos em olimpíadas e que conquistariam 29 dos 51 ouros da China — quinze a mais do que o império americano!

Peter Ueberroth, arquiteto dos bem-sucedidos Jogos de Los Angeles e presidente do Comitê Olímpico dos Estados Unidos na débâcle de Pequim, constatava o rolo compressor à sua volta. “Estão tirando coelhos da cartola”, dizia ele. “Dez anos atrás eles não sabiam o que era vôlei de praia. Acabaram de levar uma prata e um bronze (mesmo resultado do Brasil, por sinal). Ele temia que na edição seguinte, em Londres-2012, a China ultrapassaria os Estados Unidos também no cômputo geral, o que em Pequim ainda não aconteceu — o placar final ficou em 110 a 100.

No jogo de basquete em que a seleção americana esmagou o time da casa com LeBron James fazendo tudo o que sabe, Bush foi mais diplomático na torcida, até por estar sentado ao lado do anfitrião. Este, ao contrário do público que entrava em transe a cada vez que o idolatrado gigante Yao Ming (2,29m) tocava na bola, limitou-se a bater no joelho com a ponta dos dedos na primeira cesta do herói nacional (e, sinal dos tempos, jogador da NBA pelos Houston Rockets).

Um instante privado de uma nadadora faz parte da minha memória olímpica: a americana Katie Hoff perdera por uma unha (7 centésimos de segundo) o ouro nos 400 nado livre. Anotei que ela havia fechado os olhos e reclinado a cabeça na água que não a favoreceu. Nada importante, mas me tocou.

E para quem gosta de celebridades, assistir a competições é uma farra, pois elas se materializam sem avisar. Em olimpíadas não tem cercadinho nem pulseiras vip. Tem ingressos caros ou baratos. Passei décadas tentando obter uma entrevista decente com o então Secretário de Estado americano Henry Kissinger. Em Pequim, lá estava ele com a mulher, Nancy, uma fileira à frente, na mesma arquibancada. Kobe Bryant e LeBron James também podiam ser vistos acompanhando o épico de Phelps. Mas isso é raridade. São relativamente poucos os atletas que têm tempo, cabeça, permissão e meios para assistir a outros esportes.

Por estar na China, país onde todo bebê já parece nascer empunhando uma raquete de tênis de mesa, decidi que não poderia passar em branco pelo esporte nacional, lá chamado de ping pang qiu. Mesmo sem escrever sobre o tema.

Escolhi a manhã de 18 de agosto, dia da final masculina por equipes, pensando em dar apenas uma rápida passada pelo ginásio da Universidade de Pequim. Não consegui mais sair até o quicar da última raquetada. Um assombro. Mesmo passando ao largo de qualquer nuance, entendi por que a China amealhara 33 medalhas olímpicas desde a introdução do esporte nos Jogos, em 1988, e conseguiu todas as disponíveis em Pequim. Enquanto mais de 11 mil atletas disputavam 302 provas em 37 locais de competição (seis deles fora da capital), Michael Phelps avançava na sua insana obsessão por mais ouros. Foi uma rotina demente. De roupão branco com capuz cobrindo-lhe a cabeça e protegido do mundo exterior por fones de ouvido, surgia para cada nova prova parecendo um lutador de boxe.

Retirado o roupão, era sempre o mais esdrúxulo em comparação com os sete adversários, fosse qual fosse a prova. A começar pelo físico. Phelps tem um torso desproporcionalmente alongado para pernas surpreendentemente curtas. “É como vê-lo através de um daqueles espelhos que distorcem a metade inferior da superior do seu corpo”, escreveu o jornalista Mark Levine. Este torso atua como o casco de um barco na água.

As mãos do tamanho de imensas pás quase lhe chegam nos joelhos. A imensa envergadura lhe permite mover quantidades industriais de água com menor gasto de energia e de braçadas. E suas juntas são absurdamente flexíveis.

Phelps secava o bloco de largada com uma toalha que dobrava com zelo de arrumadeira de hotel, e disparava na água. A rotina: ouro conquistado, recorde batido, bandeira hasteada e hino tocado, medalha no peito e o indefectível ramo de flores do qual nenhum atleta consegue se livrar. (Trata-se de um desperdício para mim incompreensível, por inútil. Como seria feio descartá-las de imediato, o medalhado fica com o ramo na mão quando o que ele quer é sair abraçando o mundo). Alguns, como o primeiro campeão olímpico brasileiro de natação, Cesar Cielo, que em Pequim conquistou o ouro nos 50 metros nado livre e bronze nos 100, tentam jogá-las para pai ou mãe, porém o ramalhete acaba se desfazendo em voo. Em geral, o mimo acaba “esquecido” na mesa da entrevista coletiva.

Por vezes, entre uma vitória e a prova seguinte, Phelps já ensaiava um alongamento disfarçado no próprio pódio. E vinha com a bandeira americana no bolso, para não perder tempo aguardando que alguém a jogasse das arquibancadas. Houve vezes em que mostrava expressão cansada, com olhar de esquilo acuado. Outras vezes admitia estar feliz. “Nos últimos 25 metros vi que estava quase rindo na água, pensando ‘oba, eles não me pegam mais’”, contou numa das oito coletivas. Pelo acúmulo de vitórias e recordes batidos por Phelps correu-se o perigo de banalizar o extraordinário feito desse gênio polivalente da história da natação.

Fora d’água a história é outra. O departamento de marketing da Omega, uma das patrocinadoras do astro maior dos Jogos, planejou um evento que juntaria Phelps com duas outras megaestrelas da multinacional: Alexander Popov e Ian Thorpe.

Seria uma noitada grandiosa para 400 convidados no China Club, antigo palácio do século XVI de vários pavilhões interligados por quatro pátios internos. Estreia social do seu garoto-propaganda mais cintilante, com tom à altura do refinamento da China milenar. Só não contaram com a timidez e desconforto paralisantes de Phelps na vida em terra firme.

O australiano Thorpe foi o primeiro a mergulhar naquele amálgama de damas e cavalheiros esperançosos de sentar-se à mesa com um dos medalhados. Submeteu-se com docilidade profissional ao assédio, de forma a que o maior número possível de convidados pudesse sair do jantar dizendo ter estado com ele.

Dos mais de 25 mil jornalistas credenciados em Pequim, eu estava entre os 42 presentes, porém era desejado que não tentássemos entrevistas com o trio de ouro para ceder tempo e espaço aos comensais corporativos. Para sorte minha, tanto Thorpe como Popov pareceram aliviados de poder falar ao invés de só posar para fotos. “O Cielo fez uma prova admirável”, pôs-se a falar o australiano ao saber que eu era brasileira. “Na prova dos 50 você tem de estar particularmente perfeito, com tudo encaixado milimetricamente naquele dia e hora, e ele conseguiu. Eu não sou bom nisso, minhas provas permitem falhas”, disse o detentor de cinco ouros, duas pratas e um bronze, especialista nos 200 e 400 metros.

Para o russo Popov, maior velocista de todos os tempos e cujo estilo Cielo estudara a fundo, o brasileiro mostrou a que veio. “Acho equivocada a ideia de que os 50 metros são uma selvageria sem técnica. Cielo simplesmente fez tudo o que devia. Foi uma vitória de campeão”, elogiou. Entre uma frase e outra, um embaixador do Líbano lhe pediu uma foto com a filha, um ministro conselheiro britânico solicitava autógrafo e o assédio exigia paciência tibetana.

O último a chegar foi a estrela mais aguardada da noite, Phelps. Para espanto dos convidados engalanados, o atleta estava vestido de nadador: camiseta branca, bermudão, chinelo de dedo. Como portava uma inconfundível expressão de bicho acuado diante do assédio iminente, seguranças o transferiram diretamente para um antigo pavilhão ocupado por concubinas. De lá ele só saiu para uma aparição-relâmpago ladeado pelos outros dois garotos-propaganda.

Em compensação, no Estádio Nacional de Pequim, também conhecido como Ninho de Pássaro, saído das pranchetas de Herzog & De Meuron e da cabeça de Ai Weiwei, o jamaicano Usain Bolt era o oposto. Não parava de tagarelar. O novo astro-rei das pistas, além de correr os 100 metros rasos em 9s69, cruzara a linha de chegada pronto para saborear a glória. Ainda na altura dos 85 metros, certo da vitória, estendeu os braços para trás como se fossem asas e ainda deu um soco no peito com o punho direito.

Isso tudo antes de imortalizar o gesto que se tornou sua marca registrada: braço esquerdo estendido com dedo indicador apontando para o alto, em formato de flecha, braço direito dobrado, pronto para dispará-la. O mundo do esporte e dos Jogos nunca mais seria o mesmo desde que Bolt pisou naquela pista com sua sapatilha dourada. Além de tudo, ficou mais divertido.

No geral, esta edição dos Jogos foi acachapante pelo gigantismo em tudo. Apesar de o Comitê Olímpico Internacional vir tentando evitar que o número de atletas ultrapasse os 10.500, em Pequim eles foram quase 12 mil.

A CCTV, estatal chinesa e única emissora do país, instalada num prédio assombroso projetado pelo holandês Rem Koolhaus, transmitia os Jogos para uma audiência cativa. Alguns exemplos: a prova de levantamento de peso feminino teve 155 milhões de espectadores. A final feminina de tênis de mesa, 330 milhões — mais do que a população dos Estados Unidos. Em contrapartida, como tudo era controlado pela Administração de Rádio, Filme e Televisão, nenhum telespectador ficou sabendo das suspeitas de fraude nas idades de pelo menos duas ginastas do país.

Anthony Lane, da “New Yorker”, imaginou um cenário ao final de suas duas semanas de imersão na Pequim olímpica. O britânico Sebastian Coe, comandante da organização dos Jogos seguintes, em Londres, teria se escondido no banheiro na apoteótica noite da cerimônia de abertura de Pequim. Precisava dar um telefonema urgente para sua equipe. “Eles acabam de fazer uma apresentação em campo de dois mil e oito tocadores de tambores gigantes, iluminados. Sim, 2008. E nós, o que temos para mostrar?”.

Na cerimônia de encerramento, quando a próxima cidade-sede faz uma breve apresentação, os ingleses mostraram o que têm de melhor: humor, ausência de pretensão e música pop. Tudo de bom, pensei.