Cotidiano

Paula Drumond, especialista em Relações Internacionais: 'A barbárie nunca acaba'

“Sou graduada em Relações Internacionais pela PUC-Rio, onde também fiz mestrado na área de gênero, paz e segurança. Moro desde 2012 em Genebra, onde sou aluna de doutorado do Institut de Hautes Études Internationales et du Développement (IHEID), um dos mais conceituados da Europa.”

Conte algo que não sei.

O tema de meu doutorado é sobre algo que poucos sabem e até a ONU demorou a admitir: os homens também são alvo do crime de estupro durante as guerras. Uma situação que não é enfatizada porque abala as bases culturais do Estado patriarcal e do militarismo. Meu estudo parte dos casos da ex-Iugoslávia, República do Congo e Peru. Fui a esses países e analisei os arquivos originais desses relatos. No caso do Congo, ouvi pessoalmente as vítimas.

Você defende que a ONU incorpore a violência sexual contra homens em suas políticas de gênero. Fale um pouco sobre isso.

É importante destacar que se trata de ampliar e não de desviar o foco, porque as mulheres e as jovens são as maiores vítimas de estupro e mutilação em conflitos. Os ataques a homens são em número menor. Mas até 2010/2011, não havia discussão, não só na ONU mas em importantes fóruns de gênero, sobre homens como vítimas sexuais. É um assunto muito desconfortável. Em relatório de 2014, Ban Ki-moon (secretário-geral da ONU) falou disso oficialmente pela primeira vez. O problema da ONU não é só cultural; é também objetivo, de dinheiro. Se há poucos recursos, você tem de priorizar o atendimento aos mais vulneráveis, mulheres e crianças. Mas é preciso conscientizar, tratar e punir os crimes sexuais, usados como tática de guerra contra adultos e jovens. Guardadas as diferenças, esses homens violentados vivem em tempos de paz uma situação de preconceito e humilhação semelhante à que viviam as mulheres antes de existir uma estrutura de Estado, como delegacias e abrigos, para protegê-las. Vi na África sobreviventes traumatizados. E ficam ainda mais estigmatizados em países que criminalizam a homossexualidade.

Você relata ataques a homens na guerra civil do Congo, que se arrasta até hoje, na ex-Iugoslávia, cujos chefes de Exércitos inimigos ainda são julgados por genocídio, e no Peru, no conflito do Estado contra a guerrilha. Algo assim ocorre hoje na Síria?

Sim, é semelhante ao que ocorreu no Peru. Em Lima, trabalhei nos arquivos da comissão da verdade deles, nos relatos de 1980 a 2000. Os agentes do Estado usavam o estupro e a violência genital nos interrogatórios de guerrilheiros, simpatizantes da guerrilha e até de militantes engajados. O Sendero Luminoso, por sua vez, matava e castrava os inimigos; era assim que identificava os informantes. Na Síria, dois relatórios sobre presos políticos relatam que os agentes do Estado cometem violência sexual e genital contra eles durante os interrogatórios. Há relatos de estupro de esposas e filhas na frente dos detidos. Não ouvi nem li nada sobre estupro de homens como tática do Estado Islâmico.

Então chegamos à violência sexual contra homens como tortura, que existe também em tempos de paz, no Brasil, inclusive. Aliás, a explosiva crise dos presídios coloca esse tema na ordem do dia. Já pensou em estudar isso?

A violência sexual é usada entre homens como mecanismos de poder, vertical, mas horizontal também, entre iguais. Sobre a tortura, a Comissão da Verdade do Brasil fez um bom trabalho, inclusive na sessão gênero. Sobre o sistema carcerário nunca pensei como pesquisa; não vejo como acessar isso, não temos muita coisa documentada. Teria de entrar no sistema. E seria preciso ter condições de segurança.

Seria mais um estudo sobre a barbárie humana…

Sim. E, infelizmente, a barbárie nunca acaba.