Política

Paralisação: tratando câncer com morfina

É difícil um cidadão brasileiro que não conheça alguém que tenha sucumbido ao câncer. Outros tantos conhecem casos de sucesso, em que o doente se recuperou da enfermidade. Quem acompanhou de perto um paciente que tenha vencido a doença conhece as dores e as mazelas que passam a maioria deles. Os tratamentos, de modo geral, trazem consequências que são percebidas por todos e, pior ainda, sentidas pelo paciente. Mas, para os que desejam a cura, este é o caminho a ser percorrido.

Em paralelo, as pesquisas demonstram que muitos conseguem ao menos minimizar a dor com a utilização de medicamentos. É clássica a premissa entre os profissionais da área que, de todos os sintomas de um enfermo com diagnóstico de câncer, a dor é o mais receado, mesmo quando comparado à expectativa da morte.

No entanto, nem precisa ser especialista para saber que somente tratar a dor não irá proporcionar a cura. A dor acomete de 60 a 80% dos pacientes com câncer, sendo 25 a 30% na ocasião do diagnóstico e de 70 a 90% dos pacientes com doença avançada classificam a dor como de moderada a grave. A OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou a dor associada ao câncer uma emergência médica mundial e, em 1986, publicou um guia de tratamento que pode proporcionar alívio da dor em 90% dos pacientes.

A mesma OMS publicou uma escala de analgesia para tratamento da dor oncológica e orientou o uso de anti-inflamatórios não esteroides para dor leve no primeiro degrau, opioide fraco para dor moderada no segundo e opioide potente para dor intensa no terceiro degrau.

Caso um paciente queira somente não sentir a dor, poderá ter o alívio com o uso de opioides potentes. Utilizando apenas morfina, não terá as consequências do tratamento, os enjoos, as fraquezas, as quedas de cabelo etc. Mas, claro, o câncer irá corroer por dentro. Gradativamente irá tomando os órgãos e, dependendo da origem e malignidade, irá sucumbir em poucos meses ou após alguns anos.

Em um paralelo ortodóxico, a greve dos caminhoneiros faz pensar num câncer não tratado. Temos uma frota imensa de caminhões “aviltada” pelos subsídios de governos anteriores inundando a frota nos últimos anos. Várias empresas foram abertas e equipadas com muitos caminhões. O livre mercado é cruel, a lei da concorrência não se revoga facilmente. Quem precisa trabalhar diminui sua margem e ganha a concorrência.

Mas o problema é bem anterior a isso, arrisca-se até a dizer que o diagnóstico do câncer era precoce. Não há país sério que tenha sua logística baseada em rodovias. O transporte por caminhões, que chegam praticamente a qualquer lugar, deve ser utilizado para curtas distâncias: buscar o leite nas propriedades, levar ração aos animais, transportar produtos nas cidades etc. Grandes nações utilizam meios mais baratos, menos impactantes – seja do ponto de vista ambiental ou sócia – e com menos perdas. Utilizam ferrovias, transportes fluviais, transporte tubular (para gases e fluidos), entre outros.

Uma hora o sistema iria sucumbir. Hoje o Brasil está como aquele paciente que não quis sofrer os impactos do tratamento com câncer; preferiu a morfina.

Todos os governos, inclusive o regime militar, deixaram de investir em ferrovias e hidrovias (e Brasil tem um imenso potencial, pois a natureza presenteou o País com grandes rios navegáveis). Houve a preferência pelas grandes montadoras, assim os empregos eram gerados nas cidades e a população criava uma ilusão de desenvolvimento. Por meio de concessões equivocadas criaram-se muitas empresas de pedágios, com contratos muitas vezes duvidosos, e com altos custos para os veículos de cargas.

Somente diminuir os custos do combustível ou desonerar as folhas de pagamento das transportadoras é o mesmo que aplicar mais uma dose de morfina. A doença irá continuar corroendo o país e logo a dose terá que ser mais alta. E depois a concentração do opioide não será mais suficiente.

O transporte rodoviário exige o uso de combustível fóssil e é desnecessário explicar algo finito. Continuar investindo em uma matriz suja, que irá acabar, é debilitar ainda mais o já frágil sistema de transporte, ao mesmo em que é empurrar o problema para as futuras gerações.

O momento de apreensão e desordem pública é até compreensível, o brasileiro não aceita mais a carga tributária, que não é revertida em serviços, mas transformadas em benesses e regalias para o governo. Óbvio que isso deve cessar. O carcinoma está corroendo o paciente, mas tratá-lo somente com opioides não irá resolver o problema.

A luta do povo não deve ser apenas pela desoneração de impostos, mas pelas mudanças de políticas, melhorias na logística de cargas e nos transportes de modo inteligente. Uma premissa básica na linha da solução é incentivar a utilização de combustíveis renováveis, ferrovias, hidrovias e outros modais menos onerosos.

Os representantes do povo devem espelhar seus eleitores. Estes também devem cumprir os preceitos legais que regem uma nação desenvolvida. A mudança deve começar pela educação e pelo comportamento da sociedade. Enquanto isto não for alterado, teremos os mesmos legisladores que só buscam o seu bem-estar. “E, não, não há um salvador que irá magicamente após a próxima eleição resolver todos esses problemas, menos ainda sem cortar benefícios.”

E antes que o câncer consiga vencer esta nação, deixem o agronegócio gerar a riqueza que move o País. Impedir os produtores de escoar suas cargas ou matar de fome os animais irá trazer graves consequências. Os caminhoneiros desligaram seus motores, entretanto as vacas não podem ser desligadas.

O tratamento efetivo gera dores e sintomas, mas eles não podem ser apenas num setor. Especialmente naquele que tem salvado o País.

Precisamos de racionalidade neste momento.

Roberta Züge é diretora administrativa do CCAS (Conselho Científico Agrossustentável); vice-presidente do Sindivet (Sindicato dos Médicos Veterinários do Paraná)

Em um paralelo ortodóxico, a greve dos caminhoneiros faz pensar num câncer não tratado

Uma hora o sistema iria sucumbir. Hoje o Brasil está como aquele paciente que não quis sofrer os impactos do tratamento com câncer; preferiu a morfina