Cotidiano

Para proteger rinocerontes, parque florestal na Índia atira em pessoas

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RIO ? O Parque Nacional Kaziranga, na Índia, é um dos exemplos mais bem-sucedidos em termos de preservação de rinocerontes-indianos. Quando foi criada, há pouco mais de um século, a reserva localizada no estado de Assam, no nordeste do país, tinha apenas alguns animais. Hoje, abriga mais de 2.400, dois terços de toda a população global da espécie. Mas um reportagem da BBC revela que os métodos empregados são controversos: os guardas são instruídos para atirar para matar suspeitos de serem caçadores.

Entre 2007 e 2016, 72 pessoas foram mortas. Mas a situação foi particularmente alarmante em 2014, com 22 mortos; e 2015, com 23. Neste ano, aliás, foram mortos mais supostos caçadores que rinocerontes, com 17 animais mortos. Críticos acusam o parque de instruir os guardas a realizarem ?execuções sumárias?. Moradores de vilas vizinhas denunciam que inocentes estão sendo vítimas do esforço de proteção ambiental.

Em uma das vilas que margeiam o parque vive Kachu Kealing e sua esposa. O filho do casal, Goanburah, foi morto pelos guardas em dezembro de 2013. Como não existem cercas ou placas de aviso, Kealing acredita que o garoto, que sofria de transtornos mentais, entrou na reserva por engano enquanto procurava por duas vacas da família. As autoridades do parque alegam que os guardas alertaram Goanburah, que não respondeu, antes de realizarem os disparos fatais.

? Ele mal conseguia calçar as próprias calças e os sapatos ? lamenta o pai, que reconhece a impossibilidade de responsabilizar os guardas pela morte do filho. ? Eu não entrei com um processo. Eu sou um homem pobre, não posso pagar por isso.

Os esforços de conservação na Índia tendem a focar em espécies emblemáticas. Rinocerontes-indianos e tigres-de-bengala se transformaram em símbolos nacionais. E o parque de Kaziranga é a principal atração turística da região, com mais de 170 mil visitantes por ano. Por isso, a pressão política para controlar a caça é grande. Em 2013, quando o número de rinocerontes mortos mais que dobrou, para 27, políticos locais exigiram ação.

Na época, o então diretor do parque, MK Yadava, escreveu um relatório detalhando sua estratégia para combater a caça em Kaziranga. Ele propôs a proibição de toda entrada não autorizada. Qualquer pessoa que fosse encontrada dentro dos limites do parque deveriam ?obedecer ou serem mortas?. Os números nos anos seguintes mostram que o plano foi seguido.

Satyendra Singh, atual diretor do parque, relata a dificuldade no combate aos caçadores, que formam grupos ilegais que recrutam moradores da região para ajudarem a circular na região atrás dos animais, mas os ?atiradores? normalmente são de fora do estado. Ele nega que os guardas sejam instruídos a atirarem quando os suspeitos de serem caçadores são avistados.

? Primeiro, nós alertamos: quem são vocês? Mas se eles resolverem atirar, nós temos que matá-los. Primeiro nós tentamos prender, para obtermos informações, quem são os comparsas, quem são os outros do bando ? disse Singh.

?A ORDEM É MATÁ-LOS?

Mas guardas entrevistados pela BBC relataram outra história. Ao ser questionado sobre como deveria agir quando localizasse um caçador, o guarda identificado apenas como Avdesh foi claro:

? A instrução é, sempre que virmos caçadores, pegarmos nossas armas e caçá-los ? disse o guarda. ? Sim, a ordem é matá-los. Sempre que vemos caçadores ou qualquer pessoa durante a noite, a ordem que recebemos é para atirar.

Avdesh trabalha como guarda na reserva há quatro anos, e já atirou em duas pessoas, mas nenhuma delas morreu. Ele sabe, porém, que não sofreria consequências caso elas tivessem morrido. O governo tem garantido considerável proteção judicial em casos de pessoas mortas por guardas no parque.

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E o recrudescimento no combate aos caçadores provoca acidentes. Em julho do ano passado, Akash Orang, de 7 anos, estava indo para casa por uma estrada na vila onde mora, nas margens da reserva, quando foi baleado.

? Eu estava voltando do mercado. Os guardas florestais gritaram: ?Rinoceronte! Rinoceronte!?. Então, atiraram em mim ? contou o garoto.

O parque admitiu o erro. Pagou as despesas médicas e deu à família cerca de US$ 3 mil em compensação. Valor insuficiente dado os danos sofridos pelo menino, que teve a maior parte do músculo da panturrilha direita destruída. Orang ficou 5 meses internado, passou por dezenas de cirurgias, mas ainda não consegue andar direito.

O ativista pelos direitos humanos Pranab Doley, ele próprio membro de uma tribo local, denuncia que os casos de mortes provocadas por guardas do parque não estão sendo devidamente investigados. Sob o lei de direito à informação, ele conseguiu documentos que mostram que na maioria dos casos faltam dados importantes, como relatórios forenses e autópsias.

Outro dado que chama atenção é que nos últimos três anos, apenas duas pessoas foram processadas por caça ilegal, um contraste com as mais de 50 mortes. A situação no entorno do Kaziranga chamou a atenção de grupos internacionais de direitos humanos. A Survival International, baseada em Londres, argumenta que os direitos da população tribal no entorno da reserva está sendo sacrificado em nome da proteção ambiental.

? O parque está sendo gerido com extrema brutalidade ? disse Sophie Grig, da ONG. ? Não existe júri, não existe juiz, não há questionamento. E o aterrorizante é que existem planos de levar essa estratégia para toda a Índia.

Não há discussão sobre a necessidade de proteção aos rinocerontes. Os chifres de rinocerontes são vendidos como um remédio milagroso para praticamente tudo, do câncer a problemas de ereção. No mercado negro, 100 gramas são comercializadas por cerca de US$ 6 mil. Mas Sophie acredita que os esforços para a proteção desses animais foi longe demais, e acusa ONGs ambientalistas, como a WWF, de fecharem os olhos para essa realidade.

A WWF India financiou treinamento de combate para os guardas florestais de Kaziranga, e forneceu equipamentos especializados, incluindo óculos de visão noturna.

? Ninguém está confortável com a morte de pessoas ? disse Dipankar Ghose, que ajuda a gerenciar grande parte do programa de conservação da WWF na Índia. ? O que é preciso é a proteção. A caça tem que parar.