Cotidiano

Para Natalie Portman, 'Jackie' traz o papel mais difícil de sua carreira

VENEZA – O medo do fracasso é um sentimento que persegue o artista a vida inteira. A sorte de Natalie Portman é que ela aprendeu ainda muito cedo a lidar com a possibilidade da imperfeição. A atriz americana (de origem israelense) tinha 19 anos quando recebeu sua primeira crítica negativa, ao interpretar Nina, personagem do núcleo romântico da peça ?A gaivota?, do dramaturgo russo Anton Tchekhov. A montagem, em versão escrita por Tom Stoppard e dirigida por Mike Nichols, fazia parte da programação das tradicionais atividades de verão de 2001 do Central Park, em Nova York.

O elenco era composto por grandes nomes do teatro e do cinema americanos, como Meryl Streep (em sua primeira aparição em um palco em 20 anos), Philip Seymour Hoffman (1967-2014), Kevin Kline e Christopher Walken, entre outros. Mas o crítico do ?The New York Times? também prestou atenção à performance da novata, elogiada anos antes por seu desempenho no papel-título de uma adaptação de ?O diário de Anne Frank? para a Broadway. ?A senhorita Portman não demonstra fluidez necessária para transmitir tanto a força da paixão quanto a fragilidade de Nina?, escreveu Ben Brantley.

? Entrei em crise quando li a crítica. Antes da apresentação seguinte, corri para o camarim do Philip Seymour Hoffman em pânico, histérica, dizendo que não conseguiria entrar no palco novamente. Eu me sentia paralisada pela ideia de voltar a encarar a plateia depois daquela crítica ? lembra a atriz de 35 anos em entrevista à Revista O GLOBO, durante o Festival de Veneza, onde dois de seus mais recentes filmes, ?Jackie? e ?Planetarium?, fizeram sua estreia mundial.

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Experiente ator de teatro, já com alguns papéis de destaque em cinema no currículo, Hoffman conseguiu rapidamente aplacar o ataque de ansiedade da jovem colega de coxia:

? Ele me disse: ?Errar é uma coisa absolutamente normal. Todos nós fizemos muita bobagem na escola de arte dramática, quando não havia ninguém olhando para criticar, não é? Agora atuamos diante dos outros, é natural que continuemos a errar, só que em público. Você deveria fazer bobagem agora, porque é o momento certo para isso?. Percebi que, se Philip, que era um ator que eu achava o máximo, podia errar, eu também podia ? recorda Natalie, com um sorriso de satisfação no rosto.

Mesmo depois de ganhar o Oscar, por seu desempenho em ?Cisne negro? (filme de 2010; premiação em 2011), de Darren Aronofsky, no qual, ironicamente, dá vida a uma bailarina obcecada pela ideia de perfeição, Natalie não se sente imune a inseguranças. Em ?Jackie?, dirigido pelo chileno Pablo Larraín (o mesmo de ?Tony Manero? e do recente ?Neruda?), que chega às salas brasileiras no dia 2 de fevereiro, ela interpreta Jacqueline Kennedy, a mais famosa das primeiras-damas americanas, morta em 1994, aos 64 anos, já conhecida como o ícone fashion Jackie O., a viúva do milionário grego Aristóteles Onassis.

O último papel de Natalie inspirado em uma personalidade real foi Ana Bolena (no filme ?A outra?, de 2008), a jovem rainha inglesa do século XVI executada sob acusações de traição e incesto.

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Em ?Jackie?, a atriz reproduz, nos mínimos detalhes, os gestos, a voz e o sotaque da viúva de John F. Kennedy.

? Com certeza esse foi o papel mais difícil e perigoso que jamais fiz, porque todo mundo tem uma imagem dela na cabeça, de como ela era, andava, falava e se comportava ? confessou Natalie, que é um das candidatas ao Oscar deste ano. ? Alguns dizem que sou perfeccionista, mas a verdade é que eu me sinto mais confortável agora com a possibilidade do erro, das imperfeições. Claro, sempre tento dar o melhor de mim, mas se algo não funciona, apenas passo para o próximo projeto.

Narrado em flashback, a partir de uma entrevista para o repórter Theodore H. White (Billy Crudup), da revista ?Life?, o filme de Larraín se passa durante os dias que se seguiram ao assassinato de Kennedy em Dallas, em 22 de novembro de 1963. É um retrato de uma mulher devastada pelo luto, mas ainda determinada a tomar as rédeas da administração de suas imagens pública e privada. Natalie teve acesso a registros de áudio e vídeo de Jackie ? o mais valioso, um especial da rede CBS exibido em 1961, no qual a primeira-dama promove um tour pela Casa Branca, é recriado no filme ?, na tentativa de dar conta de todas suas facetas.

? Ela foi mãe, esposa e mulher traída, alguém em busca de seu lugar no mundo. Ela tinha consciência de que era um símbolo para as pessoas, como manter sua humanidade diante desse modelo que criaram para você? ? analisou a atriz.

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O célebre tailleur rosa que a primeira-dama usava no momento da tragédia é o ponto alto do figurino recriado por Madeline Fontaine. O filme foi rodado em Paris, nos estúdios do produtor francês Luc Besson, diretor do thriller ?O profissional? (1994), o primeiro longa-metragem da atriz.

? Foi engraçado porque, quase todas as manhãs, antes de ir para o set de ?Jackie?, eu passava pelo escritório do Luc ? contou a atriz, uma das garotas-propagandas da Dior, usando um confortável vestido estampado que escondia os primeiros meses de gravidez de seu segundo filho com o bailarino e coreógrafo Benjamin Millepied.

Os dois se conheceram em 2009, durante as filmagens de ?Cisne negro?. Natalie estava enorme de grávida de Aleph, o primeiro filho do casal, quando recebeu seu primeiro Oscar, em 2011. Os dois se mudaram para Paris em 2014, quando Millepied assumiu a direção do balé da Ópera de Paris. Depois de uma temporada de dois anos na capital francesa, em que admite ter demorado a se ajustar, a atriz voltou com a família para os Estados Unidos, e fixou residência em Los Angeles.

? Estou adorando viver em Los Angeles ? admite a filha única do israelense Avner Hershlag, um médico especializado em fertilidade, e Shelley, artista americana, nascida em Jerusalém, mas criada em Long Island. ? Paris é uma cidade espetacular, claro, mas gosto do clima mais estável e da diversidade de paisagens de Los Angeles, que tem praias, árvores e montanhas. Ela se tornou a capital das artes dos Estados Unidos.

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Natalie é um caso raro de atriz-mirim que sobreviveu à transição para o mundo profissional adulto. É dona de uma sólida e substancial carreira, equilibrada entre títulos arrojados, como ?Todos dizem eu te amo? (1996), de Woody Allen, filmes com ambições políticas, como ?Free zone? (2005), do israelense Amos Gitai, e produções absolutamente comerciais, como a série ?Guerra nas estrelas?, de George Lucas, na qual interpretou rainha Amidala, a mãe da princesa Leia, ou ?Thor? (2011), de Kenneth Branagh. Anos atrás, abriu a produtora Handosomecharlie Films, destinada a ?apoiar novos atores e produtores, e a inspirar novas vozes?.

Em 2015, um novo passo na expansão de seus horizontes: lançou-se como diretora de longas-metragens, com o drama ?De amor e trevas?, exibido no Festival de Berlim. Ela tem planos de voltar à direção, mas a ideia terá que esperar a chegada do segundo filho.

? Para mim, dirigir um filme é, ao mesmo tempo, um desejo e uma responsabilidade, porque, obviamente, precisamos de mais representação do olhar feminino na indústria de cinema. Acho que estamos precisando de mais diversidade de experiências e olhares ? observou a atriz.