Cotidiano

Para maioria do STF, crimes cometidos por argentino no governo Perón prescreveram

BRASÍLIA ? A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) negou ao governo da Argentina o pedido de extradição de Salvador Siciliano, suspeito de ter participado de um grupo violento de direita durante o governo Juan Domingo Perón e de Isabelita Perón. Os ministros entenderam que, embora tenham sido considerados crimes contra a humanidade na Argentina, os fatos já estariam prescritos no Brasil ? ou seja, não poderiam mais ser punidos, porque já se passaram muitos anos. Para extraditar uma pessoa, a punição precisa ser aplicável nos dois países. Como essa regra não foi cumprida, a tendência é de que o argentino permaneça no Brasil.

Há apreensão da comunidade jurídica em torno desse caso. Isso porque, se o STF considerasse que os crimes contra a humanidade não prescrevem, poderia ser aberta uma brecha na Lei da Anistia, para que pessoas que cometeram crimes muito graves durante a ditadura fossem punidas agora. Essa possibilidade não deverá se concretizar, diante do placar provisório do julgamento. Em 2010, o STF decidiu que a Lei de Anistia perdoou atos praticados no Brasil por militantes e militares durante a ditadura.

Seis dos onze ministros votaram pela libertação do réu, sem a entrega dele para o governo Argentino. Outros três ministros votaram pela extradição. Argumentaram que, pelos tratados internacionais dos quais o Brasil participa, crimes contra a humanidade não prescrevem. E, no caso, os crimes cometidos por Salvador Siciliano foram classificados desta forma pela Justiça argentina.

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, seria a última a votar, mas pediu vista do processo para pensar melhor sobre o assunto. Ela prometeu devolver o caso ao plenário da corte no início de novembro. Além dela, Celso de Mello ainda vai votar. Por unanimidade, os ministros do tribunal decidiram transferir o argentino para a prisão domiciliar, porque estaria com problemas de saúde. Ele ficará nessa condição até a corte bater o martelo de forma definitiva.

Salvador Siciliano é suspeito de ter participado de um grupo chamado Triple A, que operou na Argentina entre os anos de 1973 e 1975 e se dedicou ao sequestro e ao assassinato de militantes de esquerda. No Brasil, os crimes correspondentes são de sequestro, cárcere privado e participação em associação criminosa armada. O argentino estava sendo processado em seu país e fugiu para o Brasil, onde foi preso em 2014. Ele negou a participação nos fatos e alegou que os crimes imputados a ele seriam de natureza política.

Os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski queriam extraditar o argentino. Para eles, foram cometidos crimes contra a humanidade, que seriam imprescritíveis, conforme tratados internacionais dos quais o Brasil participa. Os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello discordaram e formaram a maioria.

? Ninguém deixa de considerar os crimes muito graves, mas eles estão prescritos no Brasil ? ponderou Teori.

? Passados 42 anos presente a época dos crimes, ainda temos feridas abertas no país irmão, que é a Argentina. Muito embora os argentinos tenham caminhado para o perdão mediante lei de anistia, acabaram por fulminar essa lei, ao contrário do que ocorreu no Brasil. A Lei da Anistia foi placitada pela maioria dos integrantes do Supremo ? lembrou Marco Aurélio.

Gilmar argumentou que, mesmo quando o réu cometeu crime muito grave, as garantias legais devem ser aplicadas.

? Em geral, as garantias penais se desenvolvem muitas vezes em relação a pessoas que não são os tipos mais angelicais. Porque tipos angelicais não são dados a cometerem crimes. Ninguém está falando que não se trate de algo grave, mas tem que se respeitar as regras básicas do estado de direito, que abrange inclusive a prescrição ? afirmou Gilmar.

Ao rebater os colegas, Barroso argumentou que, se os crimes da humanidade não fossem considerados imprescritíveis, não teria sido possível a instalação do Tribunal de Nuremberg, criado especialmente para julgar criminosos da Segunda Guerra Mundial. O ministro acrescentou que o voto dele não tinha viés ideológico, e que se posicionaria da mesma forma se os crimes contra a humanidade tivessem sido cometidos por militantes de esquerda.

? Qualquer grupo armado que atue paralelamente ao Estado para eliminar fisicamente os adversários pratica crime contra a humanidade. Este é um crime grave praticado como linha auxiliar de uma ditadura que puniu em seu território pessoas que cometeram delitos análogos. A situação no Brasil é muito diferente, mas a norma internacional que diz que o crime de lesa humanidade é imprescritível paralisa a norma brasileira, no caso concreto ? declarou Barroso.

Lewandowski alertou para o fato de o STF não ter ainda julgado o caso de crimes contra a humanidade. Para ele, o Brasil não poderia considerar que a lei interna é mais importante do que os tratados internacionais.

? O tema é da maior importância e penso que a suprema corte do Brasil não possa mais ficar alheio ao que se passa nas cortes internacionais, dizendo que trataremos desses temas apenas sob a ótica da soberania interna. O Brasil tem o dever jurídico-constitucional de colaborar com os demais países do mundo na investigação desses crimes. É optarmos pela civilização ou pela barbárie ? afirmou.