Cotidiano

Paixões e pulsões sexuais na Polônia do pós-comunismo

p04gxq1n.jpgAs imagens de ?Estados unidos pelo amor?, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, são esmaecidas, sem cores vibrantes, como as de fotos antigas esquecidas no fundo de uma gaveta. Mas é exatamente assim que o diretor Tomasz Wasilewski se lembra da Polônia de sua infância, quando o país começou a deixar para trás o regime comunista, período no qual o drama é ambientado.

? Quando eu e o (diretor de fotografia romeno) Oleg (Mutu) nos reunimos para pensar sobre o filme, percebemos que nossas memórias não tinham cores. Decidimos então trabalhar com uma paleta sem tons marcantes, porque é assim que lembrávamos daquele tempo ? contou Wasilewski, de 35 anos, durante o Festival de Berlim deste ano, onde ?Estados unidos pelo amor? ganhou o prêmio de melhor roteiro.

O filme se passa em 1990, dentro dos limites de um típico condomínio de apartamentos de arquitetura funcional. O vento frio anuncia o primeiro inverno sob a euforia de uma nova ideologia, que traz a promessa de mais liberdade, mas também incertezas sobre o futuro. Ali, longe de grandes centros urbanos, como Varsóvia, já chegam modernidades ocidentais, como videolocadoras (de fundo de quintal) e calças jeans (contrabandeadas).

Mas até a garrafa de Fanta é de um laranja pálido, sob a visão do diretor de fotografia de ?4 meses, 3 semanas e 2 dias? (2007) e ?Além das montanhas? (2012), ambos de Christian Mungiu.

? Minha visão sobre aquele tempo não é nostálgica. O comunismo foi uma das piores coisas que poderiam acontecer ao mundo. Cresci em um lugar fechado, sem oportunidades, cheio de limitações. A gente vivia com cartões especiais do governo para trocar por artigos como carne ou manteiga. Essa era a realidade de nossos pais ? descreve o diretor. ? Por isso foi importante ter a perspectiva de outras pessoas que viveram sob o mesmo regime, como o Oleg.

Nem tudo era exatamente cinza nas lembranças de Wasilewski:

? Quando eu era criança, meu pai se inscreveu para comprar um carro polonês simples. Minha mãe sonhava com um carrinho vermelho. Dois anos depois veio a resposta de que ele poderia comprar um, mas branco. Para comprar de outra cor, teriam que esperar mais um ano ? ri o diretor. ? A gente pode até lidar com situações como essa, mas quando o povo não tem liberdade, torna tudo muito difícil.

A trama de ?Estados unidos pelo amor? é distribuída entre quatro mulheres do conjunto habitacional que, inspiradas pelo momento de liberação, decidem pôr para fora suas necessidades afetivas e sexuais. Agata (Julia Kijowska) se refugia de um casamento infeliz no desejo proibido por um padre da paróquia da região. Ela é menos sonhadora que Iza (Magdalena Cielecka), diretora da escola local, que mantém um romance com o pai de uma de suas alunas.

Já Renata (Dorota Kolak) é uma professora de meia-idade fascinada pela vizinha de bloco e irmã mais nova de Iza, Marzena (Marta Nieradkiewicz). Ex-rainha da beleza da cidade, esta passa metade do tempo sonhando em ser modelo, e a outra metade trabalhando como instrutora de aeróbica. Ela se sente solitária e se comunica com o marido, que foi trabalhar na Alemanha, por cartas, telefonemas e fitas de vídeo.

Espécie de aspirante a Jane Fonda das academias, Marzena é a personagem que mais se aproxima da biografia de Wasilewski. ?Estados unidos pelo amor? é o terceiro longa do diretor, ganhador do prêmio East of West do Festival de Karlovy Vary por ?Arranha-céus flutuantes? (2013), drama sobre um jovem que descobre a própria homossexualidade.

? A fita VHS do marido, a que Marzena assiste no filme, é uma das que meu pai enviou para minha mãe, no período em que ele trabalhava em Nova York. Você está vendo o marido dela, mas, na verdade, é o meu pai naquela época ? conta o diretor, revelando um pequeno segredo de bastidor. ? Mas essa é a única relação direta da história comigo. O filme é um painel de memórias, sensações e emoções de mulheres que gravitavam em torno de mim, vizinhas, parentes e amigas.

Wasilewski observa que era comum, naqueles primeiros anos de abertura política e econômica, que os maridos deixassem as famílias e fossem buscar emprego fora da Polônia. Mas mesmo as mulheres que tinham uma profissão ou algum tipo de atividade remunerada eram relegadas ao papel de donas de casa, eliminando qualquer outra alternativa. As personagens de ?Estados unidos pelo amor? se rebelam pelo canal da paixão. Algumas com consequências violentas e trágicas.

? O objetivo delas é buscar o amor, é estar apaixonada, e exercitar essa paixão. É claro que elas vivenciam outras emoções também. Mas acredito que, quando amam, elas o fazem da maneira mais intensa possível. Quando se perde esse sentimento, elas não sabem lidar direito com essa perda ? esclarece Wasilewski, que trata do tema com o distanciamento emocional de um Michael Haneke (?A professora de piano?). ? Amo todos as minhas personagens, mas não quero salvá-las de nada. Tenho consciência da violência, mas não sei por que busco por isso. Talvez tenham que perguntar a Freud.