Cotidiano

Ousadia estética no mais tradicional teatro da França

RIO ? Nome do teatro brasileiro mais requisitado no cenário internacional, a diretora Christiane Jatahy estreia neste sábado o seu maior desafio artístico: uma versão para o filme ?A regra do jogo? (1939), de Jean Renoir, que chega no palco principal da lendária Comédie-Française como um espetáculo . Vivendo em Paris desde novembro, ela também acaba de ser nomeada diretora associada do Théâtre Odéon, onde criará três obras até 2020. Desde 2012 viajando continuamente pela Europa, em 2017 a encenadora faz novas turnês internacionais com as peças “Julia”, “E se elas fossem para Moscou?” e “A floresta que anda”, e ainda prepara duas criações inéditas encomendadas por instituições da Alemanha, o festival Theater Der Welt e o Thalia Theater, ambos sediados em Hamburgo.

Como e quando surgiu o convite para criar esse novo trabalho na Comédie?

Em 2012 apresentei ?Julia? aqui em Paris, e depois fiz temporadas com ?Julia? e com ?E se elas fossem para Moscou??, que fizeram muito sucesso. E entre as pessoas que viram estava o Éric Ruf (administrador-geral da Comédie desde 2014), que adorou e, há um ano e meio, me fez o convite.

Como foram as negociações para definir as condições dessa criação, desde o título até a sala de apresentação?

Conversamos muito. A minha condição para aceitar foi poder realizar um projeto realmente meu, a minha pesquisa artística, como faria se estivesse no Rio. Disse também que gostaria de fazer na sala Richelieu, pois me interessava trabalhar sobre a memória. Não só em relação ao filme que estou adaptando. Mas alargar a questão da memória para a história desse teatro, a sua arquitetura, esse conjunto de atores. Queria trabalhar não só no palco, mas em todos os espaços, dentro das vísceras do teatro. Filmei dentro e fora do prédio e, no fim, além de uma peça realizamos um filme inteiro.

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O que a fez escolher esse clássico do Renoir como base para esse trabalho?

Foi um insight. Havia assistido há tempos, sabia da sua importância, e lembrei do fato de ser uma obra icônica, que mudou o cinema francês (o filme usa a profundidade de campo, dando às situações de segundo plano valor equivalente às que ocorrem em primeiro plano). É cinema, mas parece teatro. Os personagens atravessam os planos como num balé de entradas e saídas. Renoir queria flertar com o teatro, fazer algo próximo a Molière, Marivaux e a Musset, que é o autor da peça (?Caprices de Marianne?) que inspirou o seu filme. Então me vi diante de um filme icônico, de um cineasta icônico que se inspirou numa peça que faz parte do repertório da casa. O conceito se fechou. Se foi o teatro que inspirou Renoir a fazer seu filme, hoje é o filme que inspira e habita o teatro. As duas linguagens se entrelaçam num grande tributo ao cinema de Renoir e também ao teatro, através da presença dos atores. Então era preciso fazer uma peça e um filme juntos e trazê-los de volta para esse teatro, e nessa sala, pois as peças que estreiam na Richelieu entram para o repertório do teatro.

Em relação ao conteúdo e aos temas abordados pelo filme, o que havia ali que, a seu ver, seria capaz de gerar uma relação com o presente, uma reflexão sobre a vida no mundo contemporâneo?

Esse aspecto é fundamental. Tinha que ser um texto através do qual eu pudesse dizer o que me interessa. O filme se passa às vésperas da Segunda Guerra e revela uma sociedade que vive em meio a um grande desajuste. São pessoas dançando à beira de um vulcão, como dizia Renoir. Essa condição me fez conectar ontem e hoje.

A sua proposta cênica faz uma adaptação que é, sobretudo, um gesto de aproximação entre o mundo retratado no original e as questões que tensionam nossas vidas no presente. Na sua versão, Christine não é uma austríaca, mas de origem árabe, por exemplo…

Sempre que parto de um texto de outra época o processo de adaptação é um trabalho de aproximação com o presente, um processo em que diminuo essa linha do tempo para que o texto se torne convergente com o que estamos vivendo e enfrentando agora. Quando aproximo ?Senhorita Julia? e ?As três irmãs? do presente, algumas questões aparentemente menos importantes no original me soam fundamentais pelo fato de proporcionarem essa aproximação com com o contemporâneo.

Nessa peça, como isso funciona?

Uso 90% do texto do Renoir. As suas palavras estão ali, mas há adaptações, mudanças, porque o mundo muda. Aqui, Christine é uma marroquina e não uma austríaca. Isso se dá pois à época do filme, em seu contexto, havia na sociedade francesa o preconceito em relação ao estrangeiro, ao austríaco. No filme, de modo sutil, ela representa, ao mesmo tempo, uma fonte de preconceito, de repulsa, mas também de atração, pois é o objeto de desejo e de disputa dos homens franceses da peça, o Robert e o André. A questão que proponho nesse caso, porém, não é a de aceitar ou não o estrangeiro, mas o fato de alguém ser continuamente marcado e visto como o estrangeiro, o árabe, mesmo estando inserido na sociedade. Isso nos faz pensar nessas barreiras invisíveis, no absurdo disso, já que o mundo, na verdade, é construído desde sempre por imigrantes. Então coloco essa questão.

?O filme se passa às vésperas da Segunda Guerra e revela uma sociedade que vive em meio a um grande desajuste. São pessoas dançando à beira de um vulcão, como dizia Renoir. Essa condição me fez conectar ontem e hoje?

De que modo essas aproximações se desenvolvem, também, na estética e na forma da peça?

No filme, Robert é um aficionado por aqueles bonecos autômatos que funcionam como caixas de música. Na minha versão ele é aficionado por um objeto tecnológico, um aparato artístico, que é a câmera de vídeo. Ele é um aficionado por câmeras, pelo uso da câmera, e é por isso que, na minha peça, tudo começa quando ele decide fazer um filme com os convidados que chegam à sua casa de campo para uma festa. Na peça, fazemos um filme dentro do filme, e esse filme é feito pelo personagem principal. Todo o começo da minha encenação é um filme… Depois há uma virada, os atores invadem a cena e o filme passa a ser realizado no palco. Entram drones em cena… Mas é importante dizer que uso o filme sempre como um elemento dramatúrgico. No fim, está tudo ligado, o passado e o presente, o teatro e o cinema, uma Europa pré-guerra e a crise atual… É um jogo de múltiplas camadas. Uma grande festa num mundo que se deteriora, onde as pessoas seguem vivendo e dançando no meio do vulcão.

Como foi a escolha do elenco? E como os atores da Comédie responderam às suas propostas artísticas?

A Comédie é uma casa de atores, administrada por eles, não é uma escola. Ela não forma atores e, por isso, não há uma forma determinada de atuação. Os atores vêm de diferentes backgrounds, e são convidados a integrar o elenco da casa e trabalhar durante um certo tempo. Então são atores preparados para trabalhar com diferentes linguagens. Conversei muito com o Ruf para escolher o elenco, e conversei com cada um dos que estão participando do projeto (são dez atores em cena). Eles já haviam assistido aos meus trabalhos, então era preciso que cada um estivesse disposto a embarcar no meu modo de trabalho, na mistura de ator com personagem, teatro e cinema, com atores vivos e inteiros no aqui e agora. Estou muito feliz de ter como veículo para o meu trabalho atores de diferentes culturas e tão dispostos a viver uma mesma linguagem.

O que chama a sua atenção em relação às condições de trabalho e de criação na França, não só na Comédie?

Aqui é uma outra realidade. Sobretudo porque há um grande apreço, respeito e investimento no teatro. A Comédie é um teatro nacional, com verba federal, do ministério, assim como o Odéon, o La Ville, o La Colline. Isso é resultado de um pensamento político, de uma política pública de apoio à cultura, que serve tanto aos artistas como ao público. O teatro aqui interessa à sociedade e interfere na vida dessa sociedade. Aqui a arte tem seu lugar, sua importância dentro da política pública. Enquanto no Brasil temos acompanhado o contrário. A cultura e os artistas absolutamente desvalorizados, trabalhando em péssimas condições.

Em termos práticos, como ilustraria essa distância entre a estrutura oferecida por um teatro como a Comédie e o modo como se cria no Brasil?

Na França um teatro não é só um espaço de apresentação. A Comédie e muitos outros teatros são espaços de criação, experimentação, produção e, também, de apresentação. Ou seja, dedicados à criação artística como um todo. Estou trabalhando no teatro desde novembro, e no dia 2 de janeiro entrei no palco onde será a peça com tudo pronto: cenário, figurino, luz. Um mês antes da estreia! No Brasil ensaiamos em espaços sem estrutura, e entramos no teatro, às vezes, três dias antes da estreia. Estou muito feliz em poder realizar esse trabalho. Sei que essa visibilidade é acompanhada de uma responsabilidade a mais como artista, mas me sinto feliz por poder realizar uma proposta artística integral, sem nenhuma concessão.