Política

OPINIÃO: Fraude no Enem - Sim, foi fraude, e isso é uma notícia boa

A Folha de S.Paulo publicou uma análise estatística dos microdados do Enem que indica claramente a existência de fraudes em todas as edições da prova e que grupos especializados comercializam o gabarito do exame, num engenhoso esquema ilegal de resolução das provas em tempo real seguido da transmissão das respostas. 
A metodologia que a Folha usou, apesar de parecer complexa, é relativamente simples e barata de aplicar, se feita por bons estatísticos. Na verdade, ela até se popularizou quando um livro de estatística em linguagem popular fez muito sucesso no Brasil e no mundo (Freakonomics – O lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta). O livro conta, entre outras histórias, a experiência do Departamento de Educação da cidade de Atlanta. Lá tinha sido adotada uma prova de avaliação da educação cujo resultado influenciava diretamente o valor de bônus que seria pago a professores e demais profissionais envolvidos. 
Ora, bonificação é uma forma de aumentar a remuneração dos professores. E quando existem motivadores econômicos que condicionam a mudança de uma realidade em troca de vantagens financeiras já é esperado que parte dos agentes que irão se beneficiar da possível vantagem faça esforços para atingir as metas que garantem a melhoria de seu poder de compra, mesmo que esses esforços não sejam muito éticos. E o bônus na cidade de Atlanta foi o maior responsável pela fraude que foi encontrada quando estatísticos foram analisar o comportamento de respostas das questões de testes para avaliar a qualidade do sistema de ensino municipal. 

Descobriu-se que pelo menos 178 professores participaram de uma fraude para enganar o sistema de avaliação e ter seus recebimentos aumentados. E eles estavam distribuídos em 44 das 56 escolas analisadas. Alguns professores simplesmente marcavam/corrigiam o gabarito dos alunos para inflar as notas médias de suas turmas.

Uma vaga em Medicina, Engenharia, Direito, entre outras, em uma universidade pública também é um belo incentivo econômico. Pagar seis anos de Medicina em uma universidade particular pode custar mais que R$ 720 mil só em mensalidades, fora que a lógica cruel da seleção “meritocrática”, da escassez de vagas e do exagerado ganho de status social já faz ser muito atraente passar em Medicina e em alguns outros cursos sem estar preparado para tal, até mesmo em universidades particulares. 

Sendo assim, é tolice nossa esperar que não existissem, ou no novo e bom Enem ou no velho e ruim vestibular, estruturas que fraudassem os sistemas e que aprovassem alunos mais abastados fornecendo o gabarito em troca de modestas colaborações milionárias.

E foi o que aconteceu. Não em um ou outro ano do Enem. Aconteceu em praticamente todos os anos em que ele foi aplicado. E é óbvio que já acontecia antes do Enem.

De 2011 até 2016 foram encontrados mais de mil casos de gabaritos do Enem que estão totalmente fora do padrão de respostas das demais provas entre 10% dos candidatos com o maior número de acertos nas varias provas do Enem. Isso significa o seguinte: 3 milhões de marcações de gabaritos seguiram um padrão de respostas e grupos pequenos de 10, 20 ou 30; ou no máximo de 67 pessoas apresentaram um padrão de resposta totalmente diversos entre a maior parte dos participantes e diversos até mesmo entre esses pequenos grupos, mas extremamente semelhantes entre os candidatos desses microgrupos.
A impossibilidade da coincidência fica ainda mais clara quando descobrimos que de um grupo divergente de 67 pessoas com altas notas no Enem estavam 11 que fizeram provas na mesma cidade (Picos, no Piauí, cidade com 77 mil habitantes) e que 8 dos 11 eram de outras cidades e fizeram a opção de sair de suas cidades para viajar, em alguns casos, por 4 horas de carro/ônibus, até seu lugar de prova. Todo o mundo que conhece o Enem sabe que nas regiões periféricas e nas cidades do interior costuma ser muito mais fácil colar nas provas justamente porque nelas muitas vezes os aplicadores têm menos familiaridade com a prova ou infelizmente passaram por um processo de capacitação menor do que em locais com melhor estrutura.
Como já foi dito antes, o Enem não é o lugar onde esse tipo de fraude nasceu. Um exemplo clássico de um tipo de fraude ocorreu numa prova da Unicamp, na década de 90. Nessa prova se cobrou uma proposta de redação exatamente igual à outra que constava em uma apostila de um tradicional cursinho de uma cidade do interior de São Paulo. Na época, a Unicamp cancelou a prova e aplicou outra. E eram várias as notícias e os boatos de vazamento de prova e/ou questões nos mais de 100 vestibulares de instituições públicas que o Enem veio a substituir. Escolas e cursinhos regionais se gabavam em anunciar que “conheciam muito bem” as provas de suas localidades. A sugestão implícita de que proprietários de cursinho e seus professores tinham acesso privilegiado às provas e/ou a parte de suas questões mesmo antes de elas serem aplicadas eram recorrentes. E é inocência demais achar que em todos os casos isso era só uma sugestão um pouco antiética desses cursinhos. Por vezes, mesmo que não fosse na maioria, isso era mesmo a realidade. Em alguns casos, os próprios professores de alguns cursinhos sugeriam o que esses vestibulares deveriam cobrar.

A adoção da análise em TRI da prova para chegar à nota do aluno, além da divulgação pública dos microdados do Enem – realidade que começou em 2009/2010 -, possibilitou que a imprensa descobrisse e denunciasse à sociedade, com certa segurança, que de fato existem fraudes que já constavam no imaginário de muitas pessoas envolvidas de alguma forma no Enem. E a reportagem-denúncia não coloca em xeque o exame, pelo contrário, o consolida. Saber que podemos descobrir um ou mais grupos que burlam o Enem para receber vantagens econômicas somente com a análise estatística dá enorme confiança na metodologia, mesmo sabendo que a denúncia atual aponta ilegalidades presentes desde 2009. O debate e as ações que devem emergir desse tema trarão mais credibilidade ao Enem e potencialmente mobilizarão estudantes e a sociedade na cobrança de providências em relação aos fraudadores do exame.

A denúncia da Folha precisa ser levada a sério. O Ministério Público deve abrir investigação e, se comprovadas as irregularidades, os responsáveis punidos. Investigação isenta e a aplicação rigorosa da lei fortalecerão o Enem, mesmo em meio ao contexto de fraude constatada.

Mateus Prado é especialista em Enem e presidente de Honra do Instituto Henfil

De 2011 até 2016 foram encontrados mais de mil casos de gabaritos do Enem que estão totalmente fora do padrão de respostas das demais provas