Cotidiano

O poder de um alho e do livro infantil

Acordar antes das 8 da manhã e chegar em casa 11 horas depois disso não é uma rotina compatível para quem têm filhos em idade de pré-alfabetização

A campanha é extensa. Há escolas que mantém um programa semanal de leitura, momento sagrado em que uma contadora de histórias, com arte e habilidade, joga, brinca e entrelaça palavras que, unidas, passam a compor a chave do portal para o mundo da fantasia, lendas e descobertas, o lúdico que mais de uma vez levou meu filho para debaixo das minhas cobertas, refúgio seguro onde o lobo mau não caminha por perto. Achei que bastava a professora, e sua performance das quartas-feiras, para estimular o universo infantil e desvendar os mistérios dos heróis e vilões, mas pelo jeito me enganei feio. O tema de casa é mais um livro, desta vez escolhido pelo aluno, curiosidade que faz com a mãe ou pai arrumem um jeito de sentar com seu filho e juntos percorrerem os intermináveis caminhos da imaginação. 

Nessas horas vejo como a vida é injusta. Acordar antes das 8 da manhã e chegar em casa 11 horas depois disso não é uma rotina compatível para quem têm filhos em idade de pré-alfabetização. A curiosidade infantil poderia por si só desvendar as figuras que, de forma colorida e inteligente, registram no papel as impressões dos personagens de um conto, este elaborado cada vez mais por especialistas tamanha sua importância no desenvolvimento infantil.  Contudo, não dominando a habilidade da leitura, precisam os pais de uma paradinha estratégica, um momento para não apenas fazer parte da educação de seu filho, mas também para ajudá-lo a compreender o enredo que lentamente se descortina aos seus olhos. Não ter tempo para acompanhar as primeiras descobertas de seus pequenos é aumentar a rachadura, aquela que começamos a alimentar no dia em que o entregamos aos cuidados de uma creche, buraco que carrega imenso potencial para se tornar o grande abismo entre pais e filhos, às vezes tão largo e profundo que se torna impossível atravessar.

Talvez agora meus colegas entendam o cheiro ácido e característico que exala de meu suor toda a vez que preciso ir a campo nesses dias de sol a pino. A culpa é dele, do livro infantil, seguido de perto pelo alho, dois dentes pela manhã, dois à tarde e mais dois à noite, suplemento natural que têm contribuído para afastar a fadiga que me destrói as costas e consome o bom humor.  Livro infantil também tem esse poder, mudar os hábitos dos pais, o que inclui comer aquela coisa horrorosa com vistas à restauração. É, não basta ajudar a vestir, dar banho, bolachas, leite e biscoitos. Agora também é preciso ler para os filhos.  Mas calma, gente! O odor tem data para terminar e será em abril, mês em que as roupas de outono e o sol mais ameno vão encobrir as consequências da dieta estratégica que promete afogar nosso cansaço e de, algum lugar milagroso, reunir a energia necessária para ler, fazer bicos e trejeitos, porque, afinal, esta noite Branca de Neve chega à casa da vovozinha, mais um turno em que preciso dos meus óculos, dessa vez, porém, não vou esquecê-los sobre a mesa de vocês. Talvez vocês até já estejam dormindo quando, às 10 da noite, um menino quase eufórico deitará feliz ao meu lado independente de meu hálito de alho. Bruxas más, ao abrirem a boca, exalam um odor de fundo de túmulo, bafo de onça que, acredite, faz as crianças rolarem de alegria.