Cotidiano

O poder de um “sim”

Soldado da Polícia Militar do Paraná e fã de jogos de futebol, Valdemar Klauck era relutante a consultas médicas e dificilmente admitia que estava doente. Depois de um mal súbito em 1995, o diagnóstico de que seus rins já não funcionavam mais mudou completamente a sua rotina e também de toda a família.

O filho e advogado João Anderson Klauck, lembra que três vezes por semana o pai fazia um trajeto de quase 130 quilômetros para enfrentar as sessões de hemodiálise, saindo de Capanema até um hospital em Francisco Beltrão, na região Sudoeste do Paraná. Nessa época, João e o irmão ainda eram crianças, mas se recordam muito bem daqueles dias.

“Ele saía às 4h30 da manhã e só voltava no fim da tarde, depois de quatro horas de tratamento”, comenta João.

A espera de um doador por uma década e meia foi exaustiva. Os filhos pequenos sem possibilidade de serem voluntários e a esposa, depois de passar por um episódio de hepatite, também foi impedida de doar um de seus rins. “Dependíamos única e exclusivamente da boa vontade de parentes ou amigos que fossem oferecer um rim para que enfim fosse realizado o transplante, algo que infelizmente não foi possível durante todo esse período”, lamenta.

Foram 15 anos de hemodiálise até Valdemar conseguir um transplante. Um novo rim para o policial só surgiu por meio de um doador falecido, com diagnóstico de morte cerebral. “Durante esses anos, várias doenças foram se desenvolvendo em razão do desgaste ocasionado pelo tratamento, inclusive problemas cardíacos graves, ósseos, infecções”, conta o filho.

Rejeição

Com a cirurgia, a família imaginava que Valdemar voltaria a ter uma vida normal e saudável. “Mas, não foi isso que aconteceu. Meu pai viveu bem por dois anos após o primeiro transplante. Porém, seu organismo rejeitou o órgão transplantado e acabou parando de funcionar em seis meses depois do início das complicações”, relata João. A partir daí, os internamentos eram recorrentes, e acompanhar o pai nessa luta já fazia parte do dia a dia dos filhos. “Teve períodos que ficamos 29 dias internados com ele correndo risco de morte”.

Com 20 quilos a menos, depois de um coma em razão de um processo infeccioso do rim que não funcionava mais, embolia pulmonar e várias paradas cardíacas, Valdemar enfrentou mais quatro anos e nove meses de hemodiálise até o segundo transplante. “Fizemos o transplante e deu tudo certo, mas ele adquiriu uma bactéria hospitalar e passou a ter processos infecciosos constantes”.

Em agosto do ano passado, aos 67 anos Valdemar faleceu em razão de um câncer no fígado, que segundo os médicos se desenvolveu por conta da quantidade excessiva de medicamentos para o tratamento da doença renal. João lembra que, apesar de todos os anos em busca da cura, de um doador compatível e de altos e baixos no tratamento, o pai não perdia a alegria de viver, e mesmo sem conhecer seus “anjos” os agradecia, especialmente aos familiares que autorizaram as doações. “Eles permitiram que meu pai vivesse um pouco mais e com uma melhor qualidade de vida”.

Doador

E é com este espírito de solidariedade que o advogado Gabriel Karasek decidiu se tornar um doador de órgãos. “O que mais me motivou a ser um doador é acreditar que um órgão doado pode dar muito mais tempo às pessoas que o recebem, inclusive curar a doença que possa ter. Ainda neste sentido, creio mesmo que a maior motivação seja acreditar que é um desperdício não doar órgãos, ainda mais quando essa doação significa a oportunidade de outra pessoa poder viver. Não existe nada mais nobre e digno do que estar vivo ou possibilitar essa oportunidade aos outros”, diz.

Karasek ressalta que, além da boa vontade do voluntário, é preciso desenvolver políticas públicas de incentivo e que desmistifiquem algumas informações repassadas sobre o tema.

Quatro vezes mais solidariedade

Dados do Sistema Estadual de Transplantes, divulgados pela Sesa (Secretaria Estadual da Saúde), mostram que as doações praticamente quadruplicaram entre os anos de 2014 e 2017 na área de abrangência da 10ª Regional de Saúde de Cascavel. No ano passado foram registradas 106 doações, o maior índice desde o início do levantamento regional publicados pelo Estado, há três anos. Em 2014, as doações somavam apenas 31.

Conforme a coordenadora da OPO (Organização de Procura de Órgãos) da 10ª Regional de Saúde de Cascavel, Maricleia Sauer, o crescimento expressivo registrado em três anos se deve à qualificação e capacitação dos profissionais que atuam nesta área. “As informações levadas à população chegam de forma clara e despertam assim, o dever moral em ajudar o próximo. Deve-se reforçar que a probabilidade de ser um receptor é maior do que ser doador”, diz.

Espera

De acordo com Maricleia, existe hoje uma fila de espera por transplantes no Paraná. A maior delas é por rim, onde há 1.312 pacientes aguardando por um doador compatível. Na lista estão ainda aqueles que necessitam de um fígado (197 pacientes), córneas (107), coração (34) e pâncreas (8). Apenas um doador de órgãos pode salvar até sete vidas e melhorar a qualidade de vida de outros quatro com a doação de tecidos.

“A doação de órgãos somente acontece perante consentimento livre e esclarecido da família. O índice de recusa familiar vem diminuindo, mas ainda há muito para ser melhorado. No momento da perda, o luto vivenciado pelos familiares é intenso. Os profissionais devem estar preparados para prestar todas as informações e esclarecimentos relacionados ao processo de doação de órgãos, auxiliando a família na tomada de decisão, para que esta possa ajudá-los na elaboração e vivência do luto. Acredita-se, e os estudos afirmam que os familiares que doaram, vivem o luto de forma menos dolorosa ao saber que parte de seu ente querido pode ajudar o próximo”, comenta Maricleia.

Total de doações na regional de Cascavel

2014 31
2015 60
2016 69
2017 106
Fonte: Sesa/PR

 

Como ser um doador

Para ser um doador no Brasil não é preciso deixar nada por escrito nem registrado em documentos. Aquele procedimento antigo de registrar a opção de doador de órgãos na carteira de identidade não tem validade. É essencial ter uma conversa com a família, pois após confirmada a morte, somente familiares poderão autorizar a doação mediante consentimento livre e esclarecido.