Esportes

O martírio do Francês recordista mundial durante a marcha atlética

O público que foi ao circuito olímpico do Pontal na manhã de sexta-feira esperava
diversão de um esporte pouco conhecido no Brasil, onde só é lembrado pelo
rebolado. Presenciou uma batalha. Alguns dos atletas mais resistentes da
Rio-2016 lutaram contra a dor e a exaustão de marchar por 50 quilômetros sob um
sol sem misericórdia. E o recordista mundial, o francês Yohann Diniz,
personificou o sofrimento e a superação que fazem a marcha atlética 50K ser
considerada a mais dura competição da Olimpíada. Diniz não fez uma prova. Ele
passou por uma provação. Enfrentou violentos problemas intestinais, caiu, perdeu
a consciência, rastejou. Levantou e marchou adiante. Chegou em sétimo. E mostrou
que a marcha atlética 50km não é brincadeira. É drama e glória olímpicos.

Diniz liderou a disputa como líder isolado por quase 20
quilômetros. No rosto, apenas confiança. Na altura do quilômetro nove, porém, o
francês começou a dar sinais de que não estava bem. Evacuou enquanto marchava em
ritmo forte. Ignorou. Limitou-se apenas a tentar se refrescar com as esponjas
molhadas distribuídas nos postos de hidratação. Colocava esponjas no short sem
parar de marchar num ritmo de quase 14 quilômetros por hora.

No quilômetro 15, ele já estava 53 segundos à frente dos
competidores mais próximos. Vomitava e prosseguia. Porém, o drama de Diniz
estava só no começo. A partir do quilômetro 20, ele começou a perder velocidade
e acabou ultrapassado por um pelotão de nove marchadores. Desmoronou no
quilômetro 32. Caiu inconsciente no asfalto. Foi socorrido e colocado numa
cadeira de rodas. Bebeu água, arfou, vomitou. Bebeu mais água. E, quando o davam
por acabado, ergueu-se. Resistência e preparo físico são os segredos da marcha atlética

Ele se levantou da cadeira de rodas ao ver passar o canadense Evan Dunfee, um
dos marchadores mais rápidos do mundo e que chegou a liderar a prova por algumas
voltas. Para espanto do público e êxtase da torcida francesa, Diniz descobriu
forças não se sabe de onde, aumentou o ritmo e se colocou de novo entre os
líderes. Não superou o seu recorde mundial de 3h32m33s. Mas conquistou um épico
sétimo lugar com o tempo de 3h46m43s.

A batalha de Diniz transcorreu em paralelo às travadas
por todos os demais 79 homens que largaram às 8h. À medida que o sol esquentava,
alguns ficavam pelo caminho, caso do brasileiro Mário José dos Santos Júnior,
que deixou a disputa no quilômetro 15 com problemas no pé. Dos 80 marchadores,
só 49 cruzaram a linha de chegada.

Quem só vê o rebolado ? resultado do movimento dos quadris em busca do
equilíbrio ? não percebe a principal característica da marcha, a resistência
extrema. Em nenhum momento, os marchadores podem perder o contato com o solo.
Para isso, a perna precisa ficar esticada, joelho rijo. Não importa a dor.
Parece punitivo e é. O objetivo é impedir que o ritmo acelerado leve à corrida.
A marcha artificial desafia a natureza humana. O marchador precisa superar os
limites do corpo e da mente.

SOB O SOL E AVALIAÇÃO DE OITO JUÍZES

Foram 25 voltas num circuito de dois quilômetros sob a inclemência do sol e
do olhar atento de oito juízes, que distribuíram cartões amarelos a quem fugia à
regra e desclassificaram 12 atletas. Um deles, o japonês
Hirooki Arai, desclassificado após chegar em terceiro lugar. Foi punido
por colidir com Dunfee, que acabou ficando com o bronze.

A vitória veio sofrida para o campeão Matej Toth. Só nos
dois quilômetros finais ele conseguiu se descolar do pelotão e arrancar, para
vencer em 3h40m58s. Deu à Eslováquia a primeira medalha olímpica no atletismo.
Disputou passo a passo com o australiano Jared Tallent. O medalhista de prata
perdeu para Toth e o que parece ser uma sina de eterno vice. Tallent sofreu duas
grandes injustiças na carreira. Ele é ouro tardio da Copa do Mundo de Marcha
Atlética em maio deste ano e da Olimpíada de Londres de 2012. As medalhas
douradas só vieram bem depois das provas. Em ambas, os campeões caíram no
antidoping e perderam os títulos. Tallent então foi sagrado vencedor. Ganhou os
títulos, mas não experimentou a glória. Ontem, viu a prata mais uma vez.

O Brasil conseguiu um resultado melhor do que o esperado. Caio Bonfim voltou
a brilhar. Sem demonstrar cansaço até o fim da prova, Bonfim esteve o tempo todo
junto dos primeiros colados e manteve um ritmo forte. Quarto lugar na marcha
atlética de 20 quilômetros, desta vez ele ficou em oitavo, uma posição excelente
se for levado em conta o pequeno investimento do país nesse esporte. Com o tempo
de 3h47m02s, Bonfim obteve o melhor tempo brasileiro e recebeu elogios no site
da Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF, na sigla em
inglês). O outro marchador brasileiro, Jonathan Rieckmann ficou na 29 posição,
com 4h01m52s.

OS MARCHADORES BRASILEIROS E A TORCIDA

Os dois foram aplaudidos o tempo inteiro pela torcida. A família de Rieckmann
veio de Blumenau, em Santa de Catarina. A mulher, Diandra Costa, destacou o
enorme esforço e a dedicação de Rieckmann para conseguir chegar à elite de um
esporte sem tradição no país.

Em mais de uma ocasião, a torcida brasileira, que nunca
assistira ao vivo a uma competição de marcha de 50km, se assustou com as quedas
e desfalecimentos de atletas. Um deles foi o húngaro Sándor Racz. Ele desabou
junto à grade de proteção. Ficou com o corpo torcido no chão, e por alguns
minutos não se mexia. Foi rapidamente socorrido, sentado numa cadeira de rodas,
mas parecia semiconsciente ao ser levado para o posto médico.

Na batalha contra o cansaço e o calor, era fácil ver marchadores cujos
joelhos rodavam para fora, na tentativa de manter a perna esticada. O tronco de
uns pendia para o lado, as pernas para o outro. Alguns se arrastavam, pois
mancar não é permitido. Mas eles seguiam.

O chinês Yucheng Han era um dos que davam sinais de que desmoronaria. A
partir do quilômetro 30, ele reduziu o ritmo e adotou o lema ?devagar e sempre?.
Como vários outros marchadores, ele buscava apoio do público com o olhar.
Exausto, agradecia com pouco mais do que um murmúrio. Como Diniz, porém, Han
teve sua epifania. Na última volta, ele deixou o reino dos quase mortos,
recobrou as forças e o sorriso. Cruzou a linha de chegada em 47º lugar. O último
foi o sérvio Pedrag Filipovic. Marchou sozinho nos dois quilômetros finais. Mas
completou a disputa mais brutal da Olimpíada.