Cotidiano

Novo livro de Pedro Juan Gutiérrez narra perseguição a gays em Cuba

INFOCHPDPICT000059849363 (2)RIO ? Numa das cenas mais duras de ?Fabián e o caos?, novo romance do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, o narrador descreve a matança de animais numa fabriqueta de carne enlatada em Havana, para onde mandavam trabalhar forçosamente os ?vagabundos, bichas ou religiosos? logo após a Revolução Cubana (1959). É uma sequência de horror com detalhes eletrizantes: ?um sujeito pegava uma cavilha de aço?, ?piso escorregadio de sangue e excrementos?, ?os porcos se encarapitavam aos berros?.

Numa das cenas mais doces, o narrador relata o momento em que o protagonista desiste de tocar peças complexas ao piano, como as russas, apesar de ser um músico exímio, por ter as mãos pequenas. ?Queria odiar Tchaikovsky, fingir que não existia. Mas não podia. Ouvia com tanta concentração que chorava. Toda sua música era tão maravilhosa que só podia amá-lo. Profundamente. Sem esperar nada em troca?.

Há ainda as cenas luxuriosas, as extasiantes, as trôpegas, as raivosas, as profundamente melancólicas. Para escrever ?Fabián e o caos?, a história de dois amigos de juventude que, por perseguições distintas (um não tinha emprego fixo, o outro era homossexual), são obrigados a trabalhar numa fábrica de carne enlatada durante os primeiros anos comunistas em Cuba, Gutiérrez levou 21 anos tomando coragem ? e colecionando cenas.

PERSONAGEM REAL INSPIROU LIVRO

A razão para tanto receio era pudor. O ?Fabián? do título carrega muitas histórias de um de seus melhores amigos de juventude, Fabio Hernandez, pianista brilhante, que sonha em compor a própria sinfonia (e as tentativas se dão em algumas das cenas ?extasiantes? listadas acima). Fabián esconde sua homossexualidade até ser capturado pela guarda revolucionária. Para construir o personagem, o autor diz que tomou excessivo cuidado de não fazer dele ?nem promíscuo, nem herói?.

? É um romance muito autobiográfico ? conta o escritor, por telefone, de Tenerife, onde passava uns dias (ainda vive em Havana). ? Sempre que enfrento uma situação autobiográfica, há um pouco de arrependimento, de medo, e nesta, especialmente, foi demasiado. Passei 21 anos decidindo se devia ou não escrevê-la e, depois, pensando em como fazê-la. É um experimento completamente diferente do que os anteriores. Só consegui quando encontrei as chaves para converter a realidade numa realidade romanceada, em não converter a realidade num livro de memórias. Fabio era como um irmão, desde adolescente, passávamos domingos ouvindo suas sinfonias preferidas, é uma pessoa que eu converto em personagem. Era injusto com os pais, tinha suas contradições. Não tinha nenhum interesse em transformá-lo num herói, num gay heroico. Tampouco me interessava fazer um promíscuo, um clichê. É uma pessoa normal, com uma sexualidade determinada, com uma obsessão determinada, e com suas contradições aparentes.

fabian.jpgO outro personagem, o amigo de Fabián (o ?caos? do título, talvez), é o alterego homônimo do autor, Pedro Juan, que vira e mexe aparece em seus romances escoando a própria sarjeta (como em seu livro mais famoso, ?Trilogia suja de Havana?). É um sujeito boêmio, de razões curtas, cercado de bebida e mulheres (nesses encontros estão as tais cenas luxuriosas, e muitas das raivosas também).

? Fabián está muito imerso em seu mundo musical, tudo o que interessa a ele é o piano e a música, enquanto Pedro Juan é um pouco como um hálito do que vai fora: o leitor vai tendo a percepção do que está acontecendo na sociedade cubana a partir de Pedro Juan ? detalha o autor. ? Um tipo louco, caótico, que não para, tem muita energia, mas era assim mesmo a Revolução naquele momento. Eu nasci em 1950, a Revolução triunfou em 1959, vivi isto tudo, lembro que era bem assim, caótico, convulso. Todo dia aconteciam coisas novas, Fidel fazia discursos de seis, oito horas, anunciando novidades todos os dias. Pedro Juan é um símbolo de todo esse caos. Fabián, ao contrário, era um tipo muito centrado, focado em sua música. Quando lhe rompem esse projeto de vida, ele afunda. Pedro Juan, que é mais flexível, louco, segue adiante e conta essa história.

CULPA RECONHECIDA APENAS 50 ANOS DEPOIS

Não menos flexível que seu alterego, Pedro Juan Gutiérrez reconhece que o clima de perseguição mudou bastante em Cuba (levou 50 anos para que Fidel Castro, numa entrevista em agosto de 2010, assumisse a culpa pela perseguição de homossexuais no país).

? Vendo agora, com a perspectiva dos anos que passaram, percebemos como foi muito, muito difícil. Havia as Umap (Unidades Militares de Apoio à Produção), para onde mandavam os homossexuais, os que não trabalhavam, e os religiosos, com a ideia ingênua de que mudassem depois de começar o trabalho forçado. Desse período se falou bastante no teatro, porque durou bastante, mas pouco na literatura. E me interessou entrar nesse tema desta vez, abordar esse período. Por sorte, em Cuba, isso está mudando muito, de maneira muito positiva, e um dos símbolos é a Parada Gay que acontece agora todos os anos. Não é ainda uma mudança efetiva, Cuba é um país muito machista, e custa muito mudar essa mentalidade. Mas não tem nada a ver com o que aconteceu nos anos 1960 ou 70, aquilo foi brutal.

Tão brutal como a cena da matança dos porcos nos currais, o abandono de idosos em asilos, ou o surto esquizofrênico na solidão ? outras metáforas espalhadas pelo romance. Apesar do tom cruel da narração desse período específico da história cubana (?Mandrake fez um truque perfeito diante dos olhos de todo mundo e ninguém viu a tramoia?, diz o narrador, referindo-se a Fidel, a certa altura), o escritor renega o papel que, de certa forma, o consagrou: o de crítico ao castrismo.

? Não tenho interesse em criticar mais o governo. Já escrevi estes livros (os da ?Trilogia suja de Havana?) no momento em que tinham de ser escritos. Histórias fortes, que escrevi com muita raiva, que se publicaram bastante. Já fiz. Agora vamos ver que outras coisas posso fazer. A escrita é essa exploração contínua. O escritor é, sim, a consciência crítica da sociedade, mas não me interessa mais esse papel de crítico do governo. Espero que minha literatura tenha universalidade, temporalidade. E que possa ser lida em Cuba, hoje. Depois de muito esforço, finalmente se podem encontrar meus livros por lá (quando seus primeiros romances foram lançados, nos anos 1990, foram proibidos na ilha).

Ao falar de Cuba, Gutiérrez se ?encarapita?. Prefere não comentar política, condição prévia da entrevista.

? Não me interessa falar de política, sabe por quê? Porque em política, o mais interessante é o que não sabemos. O que se cozinha de maneira secreta. Então para que falar de política se o mais importante não sabemos? ? questiona ele, que acaba não resistindo: ? O restabelecimento das relações com os Estados Unidos é muito importante. Oxalá as coisas sigam, melhorando, com Hillary Clinton no poder. Há mudanças, sim. Não estão fazendo com rapidez, mas vejo bem, são mudanças importantes, fundamentais. Estou de acordo que sigam mudando.

AJUDA DE PABLO MILANÉS

O escritor retoma a conversa para outro subtema do romance: a essência do artista.

? Quando eu decidi ser escritor, aos 17 anos, tive uma iluminação, uma certeza, de que queria escrever histórias. Li ?Bonequinha de luxo?, de Truman Capote, e pensei: eu quero escrever como esse homem. É tão natural o que ele escreve que parece que não é literatura, é como se ele estivesse nos contando algo ao ouvido. Junto com essa certeza, entendi que a literatura, a arte é algo sagrado para mim. Não há necessidade de ser rico, famoso, a escritura é como uma explicação interior do que está passando na vida ? diz.

Nas passagens em que constrói a essência artística de Fabián, por meio de sua potência musical, o autor contou com a ajuda de amigos músicos, que cita nos agradecimentos do livro, como Pablo Milanés. Tanto nas cenas em que explora a resignação do personagem ao tocar repetidamente o ?Noturno?, de Chopin, em vez de insistir nas peças mais complexas, quanto na maneira pela qual Fabián compõe quase instantaneamente alguns boleros mais bobos para ganhar algum dinheiro, ou ainda nas tentativas de escrever a própria sinfonia.

? Para mim, cada vez que começo um romance, é como uma indagação, uma exploração de algo que está dentro de mim. Este mesmo conceito tinha Fabio, meu amigo, como músico e amante da música, e Fabián, o personagem: a arte como algo maravilhoso, único.

TRECHO:

Quando Fabián foi despedido do Teatro de Ópera, todo mundo sabia o motivo. A fofoca se espalhou imediatamente porque a parametração só atingiu Fabián e mais dois rapazinhos bailarinos que ostentavam uma encantadora feminilidade. Muito simpáticos e alegres. Também foram mandados para alguma fábrica. E sumiram no mundo. O outro pianista, um velho muito bicha e muito mau- -caráter, conseguiu se salvar. Nunca se soube como foi. O fato é que jamais o perturbaram. Seria dedo-duro? Ninguém sabia. Pelo sim, pelo não, ninguém falava mal do governo na frente daquele velho ladino que ? pelas costas ? todo mundo chamava de ?Víbora?. E imediatamente pararam de falar com Fabián e até de mencioná-lo nas conversas. Foi excluído. Fabián deixou de existir até na memória coletiva do grupo. Todos tinham medo de ser chamados pela famosa ?Comissão Técnica? e também despedidos. Era lógico. Sempre acontece isso. As pessoas querem salvar a própria pele. Ninguém queria ser amigo de veado. ?Fabián se deu mal porque é veado.? A palavra gay ainda não era usada. Assim, cruamente. ?Fabián se deu mal porque é veado.? E, assustados, mudavam de assunto. Não era bom insistir nos detalhes. O medo paralisa mais que o veneno de uma serpente.