Cotidiano

Novo livro de Alberto Manguel conta a história da curiosidade guiado por Dante Alighieri

Instinto humano, fundamental para a sobrevivência, a curiosidade foi combatida ao longo da História e continua a ser vista como pecado, não apenas pela religião, mas por aqueles que desejam manter o poder às custas da ignorância. Em ?Uma história natural da curiosidade? (Companhia das Letras), o argentino naturalizado canadense (também já viveu em Israel, França e Itália) Alberto Manguel mostra como este impulso, que começa com a mania de perguntar ?Por quê?, na infância, evoluiu através dos tempos.

Vivemos numa sociedade em que muita gente ainda crê que a curiosidade de Eva ao provar o fruto proibido pôs tudo a perder: se tivesse resistido à tentação, viveríamos no Paraíso e teríamos todas as curiosidades da Árvore do Conhecimento satisfeitas. Inclusive as que mais nos angustiam, do gênero ?o que é o infinito?, ?por que estamos aqui?, ?o que é a verdade? e a principal de todas: ?quem sou eu??.

Numa estrutura que espelha a ?Divina comédia”, de Dante Alighieri, Manguel é guiado pelos mistérios da vida neste mundo e de como eles são formulados na linguagem. Com clareza e erudição, guia o leitor pelos abismos entre o saber intuitivo das epifanias e seu reflexo empobrecido nas palavras ? meio que escolhemos como instrumentos de expressão predominante.

Recém-empossado presidente da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, o escritor, tradutor, ensaísta e romancista (que foi secretário de leitura de Jorge Luís Borges na juventude) explica, contudo, que a literatura subverte esta limitação, fazendo da imaginação a arma mais potente da eterna resistência aos inimigos do saber.

Manguel estará no Brasil no fim do mês para o ciclo de debates dos 30 anos da editora Companhia das Letras (a partir do dia 30, em São Paulo), e, em 23 de setembro, no XV Encontro da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), na Uerj. Nesta entrevista por telefone, ele fala sobre a extraordinária e perigosa aventura de mergulhar na curiosidade até o fundo.

Por que a curiosidade ameaça?

O que nós não conhecemos é sempre perigoso. A impossibilidade de descobrir o que há além do liminar do horizonte nos inquieta. Temos medo de que, ao descobrir o que está escondido atrás da porta, tropecemos em nossas certezas. Mas o que nos inquieta nos tenta. E o que é fácil, acessível, não é tentador. Construímos em torno disso narrações para explicar nosso desejo e nosso medo diante do desejo.

O escritor Amós Oz diz que as ausências do humor e da curiosidade estão na base do fanatismo.

Exatamente. A isto se acrescente o dito de Graham Greene: ?Não podemos odiar aquilo que conhecemos.? O ódio é a vontade de não conhecer, por isso, a curiosidade é um meio de combater o preconceito.

No entanto, vivemos numa sociedade mais afirmativa que interrogativa…

Certamente. Os catecismos, os dogmas, estão aí para nos garantir que as coisas são brancas ou pretas. Mas estão aí também as fábulas, as narrações, as parábolas, as ficções, toda a ambiguidade da literatura (inclusive religiosa…), por meio das quais aprendemos a nos conduzir, a escolher, a estar no espeço existencial de fato, e não somente no espaço dogmático.

Vivemos uma guerra entre o medo e o desejo de saber?

Não uma guerra, mas uma tensão entre o que nos é interditado e o que nos tenta: o conhecimento. É a tensão vital. Desde o começo, buscamos saber o que há além, mas ao mesmo tempo ansiamos voltar para a segurança do ninho. É o movimento adolescente, hoje tão bem explicado pelos psicólogos, quando o sujeito luta pela liberdade de ir na direção do perigo do mundo exterior, mas precisa também da certeza de que, a qualquer momento, pode voltar para casa.

Nessa tensão, está em jogo o futuro da Humanidade? O triunfo do conhecimento ou do obscurantismo?

Não sejamos apocalípticos… É uma tensão pendular. As idades se sucedem com um momento de censura e outro de liberdade intelectual, mas sempre há os dois. No nosso tempo, o questionamento do modelo democrático, por exemplo, implica de alguma forma a busca de uma nova liberdade mais afirmativa diante do autoritarismo do capitalismo, do comunismo, desses sistemas que se mostraram fracassados. Mas também queremos uma sociedade regulada, que construa muros em torno de nós.

Estamos numa aldeia entre muros?

O modelo dos muros, em Berlim, ou o que quer construir Trump são exageros de sociedades que precisam de limites estritos para se definir. Ou seja, impedir a curiosidade de sair do modelo urbano na direção do mundo exterior. Isso, contudo, cria no seio da sociedade uma necessidade obrigatória de encontrar brechas no muro para sobreviver.

Isso vai resultar num novo modelo?

É preciso! Mostramos várias vezes que os modelos de hoje não são válidos. Desde a ?República? de Platão, na qual Sócrates passa em revisão todas as sociedades possíveis de seu tempo e chega à conclusão de que nenhuma, muito menos a democracia, serviria para um mundo mais justo e igualitário. Precisamos encontrar um novo modelo se quisermos sobreviver como espécie. Se fôssemos formigas, deveríamos procurar um novo formigueiro, porque aquele que construímos está desabando agora mesmo.

Ou seja, uma visão bem apocalíptica.

Não é do apocalipse que falo. Mas simplesmente do fim. O poeta T.S Eliot disse que o mundo não acaba com um estrondo, e sim com um gemido. Nós vamos nos apagar docemente, como as espécies em geral desaparecem. Não somos uma espécie privilegiada. Elas acabam todos os dias. Repito: se não encontrarmos um modelo mais razoável, vamos desaparecer. Os cientistas já nos deram uma data limite para mudar. Se não mudarmos, o declínio é irreversível.

Falando em ciência: ela tem esse desejo de tudo saber. Você crê nisso?

É importante crer que podemos tudo saber. E é igualmente importante saber que não podemos tudo saber. Contudo, é preciso começar com uma ambição extrema para em seguida nos vermos limitados na tentativa. Você não pode começar uma exploração dizendo: ?Só posso ir até este ponto.? Não pode se impedir de continuar o caminho até onde ele pode levar. Mas sabendo que o caminho é infinito, ou quase, e que nossa vida não o é.

As antinomias de Kant mostram que nunca vamos entender certos conceitos paradoxais da existência, como o infinito. Por que insistir?

Nossos cérebros são construídos de uma forma bem bizarra. Criamos noções que nos fazem perguntar coisas que não podem ser respondidas. Mas as perguntas insistem em ser feitas. A teologia é um exemplo: estabelecemos a ideia de algo que não pode ser conhecido, uma divindade, e em torno tentamos criar sistemas lógicos para explicar esta impossibilidade. O exemplo mais bem-sucedido e extraordinário é a ?Divina comédia?, de Dante, que dá estrutura ao meu novo livro. Dante, um poeta curioso, monta um quadro com o dogma cristão para ?esquadrinhar? os limites de seu próprio questionamento. Mas nesse quadro ele tem uma liberdade total: a viagem que nos propõe, de um curioso no ?outro mundo?, é possível por causa dessa fronteira do poeticamente concebível.

Não se precisa crer para ter benefício deste ?enquadramento?…

Toda a literatura, de certa maneira, é construída em torno dessa dinâmica. Não precisamos crer no universo de ?Chapeuzinho Vermelho?, mas na busca de questionamento que tal aventura desencadeia. A imaginação e a transposição do medo nos ensinam a pensar.

Também calcado na ?Divina comédia?, o ?Aleph?, de Borges, descreve um ponto no espaço (um ângulo num porão) onde se pode ter um vislumbre profundo de toda a realidade do universo. Tal epifania é possível?

Sim, nós temos essa epifania todos os dias. Na rua vemos o Sol, uma epifania cotidiana que nos faz compreender o mistério da existência de uma forma íntima, profunda e pessoal. Daí até pô-la em palavras de um modo lógico é um grande passo que não conseguiremos dar jamais. A epifania cotidiana é uma verdade existencial. Gilbert Keith Chesterton dizia que o mais surpreendente dos milagres é que eles acontecem.

Como naquele estado entre o sono e a vigília, quando temos a impressão de, num átimo, compreender tudo sem a necessidade do verbo… Essas visões fugitivas são reais, absolutas?

Reais, sim; absolutas, não. Posto que tudo é subjetivo. Pablo Picasso dizia que se surpreendia cada vez que tomava um banho com o fato de não se dissolver na água… Ou seja, não é preciso estar em sonho, em nenhum estado hipnótico nem meditativo, ou sob o efeito de qualquer substância, para ver aquilo que não sabemos descrever, mas que conhecemos.

Como é estar na direção de uma biblioteca que Borges comandou?

É uma situação que pertence ao domínio do sonho e que inclui o medo e a felicidade que sonhar nos provoca. Dirijo agora uma instituição com mais de mil pessoas, tentando ordenar cinco milhões de títulos. E estou bem consciente de tocar um projeto cujo fim jamais verei.

É como reencontrar a biblioteca incendiada de Alexandria…

Todas as bibliotecas são de Alexandria. A ambição de conhecer, de medir, em conflito com a impossibilidade de ordenar racionalmente o que contém. Há um departamento de investigação que se ocupa de pesquisar a fundo cada tema e fazer catálogos temáticos para ajudar o leitor. Mas nunca chegaremos lá.

O que é educar, hoje?

O mundo hoje é uma só sociedade de consumo que, para funcionar, deve educar o cidadão a não pensar. Os valores são apenas aqueles da facilidade, da rapidez, do banal. Essa educação necessariamente se opõe à inclinação natural do ser humano que é a de parar, refletir, levar a curiosidade ao fundo. Apesar do esforço de alguns professores, prevalece o impedimento à reflexão. Nossos centros de estudo não são mais escolas: são centros de adestramento para criar escravos que devem cumprir certas funções no seio de uma usina. Estamos no modelo de Chaplin em ?Tempos modernos?. Isso permite que uma máquina econômica falida e infernal continue a nos engolir e se alimentar do sangue de nossos filhos, chamada ?modelo econômico?.

Qual o papel da internet?

Temos uma tendencia horrível de culpar o instrumento por nossas faltas. É como dizer que o culpado da morte é a faca. A faca é útil. Podemos usar para cortar carne ou matar uma pessoa. A internet é tão útil quanto foram a imprensa ou os rolos de papiro. Mas se não a utilizamos como meio de aprendizagem, vira uma arma letal.

Qual a sua curiosidade definitiva?

Não tenho uma. Tenho muitas. Múltiplas. Tenho a impressão de viver numa floresta de pontos de interrogações no lugar de árvores.

Borges, com quem você trabalhou, era um curioso furioso?

Ele tinha uma grande curiosidade que era conduzida pela sua inteligência, assim como Virgílio (a razão) conduzia Dante. O caminho que você se forja nessa floresta, em qualquer abismo ou montanha, depende de sua inteligência. A inteligência de Borges se interessava sobretudo pelas questões literárias, poéticas e éticas, pela mecânica que resulta no texto. Ele queria saber como um poema e uma récita são construídos, o que faz com que um poema seja bom e o outro não.