Cotidiano

Novas construções mudam a paisagem no entorno de bens tombados ou protegidos

cc1.jpgRIO – ?Da rua, a gente via a igrejinha, árvores ao fundo e até um pedaço do Corcovado?. Via, porque a paisagem, tão marcada na memória de Chico Bicalho, morador de Laranjeiras, desapareceu. Hoje, no entorno da Igreja Nossa Senhora do Cenáculo, segunda mais antiga da Zona Sul, em vez de mata há dois prédios residenciais. Colado à paróquia, o cenário agora inclui a piscina e a churrasqueira do condomínio quase pronto, na Rua Pereira da Silva. E o empreendimento, contra o qual os vizinhos lutaram por cinco anos, reluz fincado ao lado de um conjunto arquitetônico do século XVII, tombado pelo município em 2001.

Essa é uma situação que tem se multiplicado no Rio, cidade onde novas construções interferem na ambiência e na visibilidade de bens tombados ou protegidos, por vezes com a permissão de órgãos de preservação do patrimônio. Essa política urbana repete por aqui ? e não é de hoje ? a polêmica em torno do Edifício La Vue, em Salvador, que no mês passado derrubou os ministros Geddel Vieira e Marcelo Calero, que ocupavam as pastas da Secretaria de Governo e da Cultura, respectivamente.

“OBRA MAIS ODIADA DA REGIÃO”

Na cidade e no estado, interesses políticos ou imobiliários volta e meia passam até por cima de bens históricos, numa guerra sem fim. Do bota-abaixo de Pereira Passos às obras olímpicas de Eduardo Paes, incluindo inúmeros imóveis privados, o Rio vem transfigurando sua memória. A disputa, em vários casos, vai parar nos tribunais. Só em relação a bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ? envolvido também na batalha da Bahia ?, há cerca de 350 processos em tramitação na Justiça Federal, entre ações civis e penais. Num dos casos mais recentes, a Prefeitura do Rio foi impedida de erguer, sobre o espelho d?água tombado da Lagoa Rodrigo de Freitas, a arquibancada flutuante que serviria aos Jogos de 2016.

Quanto ao empreendimento de Laranjeiras, foi movida uma ação popular na Justiça estadual, e o MP chegou a iniciar um inquérito civil. Mas, nesse duelo, o condomínio venceu. Segundo Chico Bicalho, ?é a obra mais odiada da região?. No outro lado do balcão, o presidente do Instituto Rio Patrimônio, Washington Fajardo, defende os novos prédios. Garante que, ali, a legislação não foi atropelada:

cc2.jpg? A ambiência daquela rua não é histórica. O conjunto urbano da área já é bastante heterogêneo, com edifícios de altura superior aos recém-construídos. O que se analisou foi o aproveitamento do terreno em que fica o patrimônio. As licenças foram concedidas, e todo o conjunto arquitetônico foi recuperado ? afirma Fajardo.

Segundo ele, isso ocorreu graças a um dispositivo do plano diretor da cidade que estimula, dependendo do caso, empreendimentos em terrenos de bens históricos, em troca de seu restauro. É algo, diz ele, que tem acontecido com frequência. Cita como exemplos já concluídos a sede do antigo Colégio Jacobina, de 1879, em Botafogo; o Convento Bom Pastor, obra de 1895, na Tijuca, que ganhou unidades residenciais; e a Clínica Doutor Eiras, de 1865, também em Botafogo, que hoje abriga um enorme condomínio.

Nesse modelo, vem mais por aí. Já estão em estudo empreendimentos parecidos nos terrenos do Palácio Modesto Leal, em Laranjeiras, e da antiga Perfumaria Kanitz, no Centro. Segundo Fajardo, o município tem hoje cerca de 35 mil imóveis tombados ou preservados. Para ele, pressões políticas fazem parte da gestão do patrimônio:

? O que aconteceu em Salvador foi absolutamente fora da curva. O caso não foi de patrimônio, mas de falha ética, a intervenção de um ministro por um interesse privado. Essa é a crise. Mas, se eu recebo pressão? Digo que sim. Acho ótima. Não existe a situação onde tudo é um mar de rosas. Pressão política é positiva. Faz parte do processo.

Já o historiador Nireu Cavalcanti é enfático: ele diz que o Rio é a fonte mais corrupta na questão do patrimônio, muito antes do caso de Geddel na Bahia. Ao enumerar o que considera disparates, ele lembra a construção, nos anos 1960, de um prédio de escritórios em cima do sobrado do Arco do Teles, na Praça Quinze ? tombado em 1938, menos de um ano depois da criação do serviço de patrimônio que antecedeu o Iphan.

? Este foi um exemplo do absurdo que o Iphan permitiu no Rio para atender a interesses da especulação imobiliária. A prática de órgãos públicos serem usados por iniciativas particulares é antiquíssima. Para quem tem algum compromisso com a História, é algo que mata. Nós, os defensores do patrimônio, viramos escritores de obituários ? conclui Nireu.

Entre as derrotas, o historiador cita a construção do Centro Candido Mendes, de 49 pavimentos e 94 mil metros quadrados na Rua da Assembleia, que desde 1982 destoa e faz sombra na ambiência que inclui o Convento do Carmo, a Antiga Sé, o Palácio Tiradentes e o Paço Imperial, joias do Rio Antigo.

Dos dias atuais, Nireu está na trincheira para defender o prédio do Quartel-General da Polícia Militar, na Avenida Evaristo da Veiga, no Centro. O estado quer vendê-lo para fazer caixa.

Fato consumado foi a construção das torres que abrigam a Petrobras na Rua dos Inválidos, no Centro, erguido no quarteirão da antiga Vila Rui Barbosa e, hoje, um gigante de 19 pavimentos, 185 mil metros quadrados e janelas espelhadas, cercado pelo casario de séculos passados. Em 2009, quando estava em construção, quase ruiu a Igreja de Santo Antônio dos Pobres, de mais de 200 anos e tombada pelo município.

? Foi triste demais o que aconteceu. Abriram-se crateras no chão. Achei que a igreja fosse cair ? lembra Norma Nunez, que acompanhou todo o drama no templo religioso, até a construtora das torres se responsabilizar pelo restauro.

LAGOA FOI PRESERVADA

Outro passado ameaçado está em Magé, ao fundo da Baía de Guanabara. Fica à beira-mar a estação de Guia de Pacobaíba, de onde partia a Estrada de Ferro Mauá, a primeira ferrovia do país. O lugar, ao longo dos anos, sofreu com o abandono e a descaracterização. Tanto que o Ministério Público Federal (MPF) moveu ação civil pública por improbidade administrativa contra dois ex-superintendentes do Iphan por terem, segundo o MPF, autorizado a ocupação irregular e a realização de obras sem supervisão técnica. O MP federal também denunciou a ex-prefeita do município, Núbia Cozzolino, por autorizar obras que aterraram os trilhos da estrada de ferro, no distrito de Piabetá. Ambos processos ainda estão sem sentença.

No caso da arquibancada flutuante da Lagoa, que o Ministério Público conseguiu reverter a tempo, o procurador Jaime Mitropoulos lembra que uma ilegalidade surgia a olhos vistos.

? Mesmo sem parecer do Iphan, começaram a ficar evidentes os sinais das obras. Por se tratar de um espelho d?água tombado, o MPF ajuizou imediatamente uma ação para parar a construção. Ganhamos uma liminar e, depois, uma sentença ? diz Mitropoulos, acrescentando: ? O entorno desses bens precisa ser protegido. Quando algo pode interferir na paisagem ou na ambiência do bem preservado, restringindo de modo significativo a sua visualização, isso também tem que ser combatido. O problema é que o Iphan tem recursos muito parcos para proteger um acervo tão grande e rico como o do Rio.

CRESCIMENTO E DESCASO ATROPELARAM A HISTÓRIA

Pior do que as sombras que escurecem parte do patrimônio no Rio é o descaso que deixa em ruínas e, muitas vezes, põe abaixo a História. Aqui, sobram casos como o do Palácio Monroe, na Cinelândia, símbolo da República, em estilo eclético, derrubado pelos militares em 1976. É um dos casos mais conhecidos, de uma lista que inclui o desmonte do Morro do Castelo, o desaparecimento do casario e de igrejas que deram lugar à Avenida Presidente Vargas e a descaracterização quase completa da antiga Avenida Central, hoje Rio Branco.

Os ventos de demolição atingiram ainda Botafogo. Da famosa enseada, de frente para o Pão de Açúcar, sumiram, nos anos 1950, o Pavilhão Mourisco, símbolo da arquitetura neoislâmica que foi demolido para a construção do Túnel do Pasmado, e, na década de 1970, o palacete da família Guinle, onde funcionou a Embaixada da Argentina.

No interior do estado, a mesma sina. A Vila de São João Marcos, em Rio Claro, era uma relíquia da arquitetura colonial. Seu tombamento ocorreu em 1939, nos primórdios do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, antecessor do Iphan), criado por Getúlio Vargas em 1937. Mas foi o próprio Getúlio que destombou a vila, em 1940, para permitir à Light o represamento das águas do Ribeirão das Lajes. Restaram só ruínas.

MARQUISE DO MARACANÃ

A derrubada da marquise do Maracanã, em 2011, durante a reforma do estádio para a Copa de 2014, revela que o desprezo pela memória persiste. Na época, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou, por crime contra o patrimônio cultural, o ex-superintendente regional do Iphan Carlos Fernando de Andrade, que deu uma autorização prévia para demolição. Num acordo judicial, ele pagou R$ 5 mil para uma entidade filantrópica, e o processo foi suspenso.

? Quando se tem uma decisão política para uma obra sair, os órgãos técnicos, como o Iphan, não conseguem impedir que ela vá adiante ? disse a procuradora da República Monique Cheker.

saocornelio.jpgDuas famosas construções da cidade também estão em risco: a estação de trem da Leopoldina, inaugurada em 1926, inspirada na arquitetura palladiana inglesa, e tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac); e o Palacete São Cornélio, na Rua do Catete, um dos primeiros tombamentos federais da História do país, em 1938, com afrescos em estilo neoclássico trazidos pela missão francesa.

? A gare onde ficam os trens está cedida à SuperVia. O prédio principal é dividido entre a União e o estado. Então, há três proprietários: o estado está quebrado, a União está quase, e a SuperVia diz que a responsabilidade não é dela. Mesmo assim, a concessionária se comprometeu a fazer o projeto de uma reforma emergencial. Há uma ação civil pública para decidir como vai ser resolvida a recuperação do bem ? disse o procurador da República Sérgio Suiama.

VÍTIMA DA DEMOLIÇÃO

No caso do Palacete São Cornélio, onde Suiama também atua, uma ação civil pública já foi concluída. Mas, como a Santa Casa da Misericórdia, dona do imóvel, nada fez, o procurador entrou com uma ação penal.

O historiador Olínio Coelho, que foi chefe do Sphan entre os anos 60 e 70, diz ter convivido muitas vezes com os pedidos para destombar bens históricos:

? Em todas essas demolições, sempre houve muita comoção popular. O que quase nunca impediu, porém, a destruição do patrimônio.

Ele próprio foi vítima de uma delas, quando o governador Marcos Tamoio, em 1978, pediu autorização ao Sphan para destombar e derrubar o Solar Monjope, em estilo neocolonial brasileiro, em frente ao Parque Lage, no Jardim Botânico. O plano era dar lugar a um empreendimento imobiliário.

? Nós demos um parecer contrário ao destombamento. Por isso, eu e o diretor do Sphan, Marcello Ipanema, fomos demitidos. Foi um caso em que tombaram, literalmente, o chefe do serviço e o solar ? ironiza o historiador.