Cotidiano

Notáveis criam painel imaginário de 2017 com textos e desenho inéditos

RIO ? Dizem que 2016 foi um ano tão ruim para o Brasil e para o mundo que não deveria ter existido. Mas existiu e, na semana que resta, inclusive na hora de desejar feliz ano novo à meia-noite do dia 31, a pergunta é: será que 2017 chegará ao fim? Há quem, como o jornalista e escritor Arthur Dapieve, calcule que o calendário vá durar só umas poucas semanas, até uma data-limite (que não vamos adiantar para não dar spoiler das páginas que seguem). Nelas, onze convidados especiais descrevem, em textos exclusivos para a Revista, cenários fictícios sobre o que vai ser de nós no próximo capítulo do calendário.

Numa escala imaginária que vai da utopia (concepção de um futuro ideal, aparentemente irrealizável) à distopia (palavra da moda que descreve um mundo no qual reine a opressão e/ou o caos), as previsões, em forma de pequenas sinopses, tendem fortemente para a constatação de que teremos um 2017 bastante distópico. Nesta linha vão, radicalmente (mas com a devida dose de ironia), além de Dapieve, o roteirista Rafael Dragaud, o cartunista Arnaldo Branco, o humorista Fernando Ceylão, o crítico de música Jamari França e o dramaturgo Luiz Henriques Neto. Mais moderados, a poeta Maria Rezende, o diretor Beto Brown e a atriz Clarice Niskier, em seus textos, vão mais no caminho de sonhar soluções parciais para sobreviver ao bombardeio que vem de todos os lados, afetando a ideia que temos da Civilização.

Poeta e letrista, recém-imortalizado, Geraldo Carneiro optou por compor um díptico ambivalente: uma peça utópica, e uma distopia plena, com o olho na História do país. O artista visual Ricardo Chreem assumiu o modo de fuga ao criar uma alegoria circense para espelhar a dualidade na qual estamos imersos. Estranho ao ramo da escrita, mas conhecido piadista compulsivo em seu estúdio de pilates, o fisioterapeuta Dirlei Carvalho improvisa uma volta à Pangeia, o continente original, para que a globalização ?pegue? de uma vez e a gente possa economizar em deslocamento e unificar as ações (e nações), com a ajuda das empreiteiras para guindar e ?colar? os blocos como eram há uns 300 milhões de anos.

Celebrado artista gráfico e inventor de objetos, Guto Lacaz preferiu, por motivos óbvios, participar com uma ilustração sem palavras (ao lado, abrindo a reportagem), deixando ao leitor o complemento da obra, de acordo com cada interpretação dos fatos presentes e de suas consequências futuras. Com tantas ideias e tanto talento, quem sabe, dias melhores virão, ou, pelo menos, a coisa não piora.

AGENDA 2017 (COMPLETA), por Arthur Dapieve, jornalista e escritor

Domingo, 1° de janeiro: Ressaca.

Segunda, 2: Cancelar exames médicos.

Terça, 3: Cancelar todos os compromissos.

Quarta, 4: Dizer umas verdades na cara daquele babaca.

Quinta, 5: Dizer o que penso das polícias religiosas das redes sociais.

Sexta, 6: Cancelar todas as contas em redes sociais.

Sábado, 7: Sumir, dar um perdido em todo mundo.

Domingo, 8: Caminhar pela orla do Rio.

Segunda, 9: Devolver livros e discos emprestados.

Terça, 10: Comprar um bote inflável.

Quarta, 11: Escutar o Réquiem de Verdi.

Quinta, 12: Escutar o Réquiem de Mozart.

Sexta, 13: Escutar o LP dos Sex Pistols.

Sábado, 14: Estocar água e cerveja. Beber.

Domingo, 15: Relefonar para os amigos. Beber mais.

Segunda, 16: Comprar víveres. Beber muito.

Terça, 17: Comprar mais víveres. Beber de esquecer.

Quarta, 18: Rasgar dinheiro.

Quinta, 19: Atravessar o Largo da Carioca com o bilau pra fora da braguilha.

Sexta, 20: Posse de Donald Trump.

BRASIL 2017, por Geraldo Carneiro, poeta recém-imortal

I – BRASIL 2017 (distopia)

O Supremo manda prender o presidente da República. O presidente foge para o Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul recomeça a Revolução Farroupilha. No sertão da Bahia surge um novo líder chamado Antonio Carlos Conselheiro. Indignado com a insurreição baiana, São Paulo faz nova Revolução Constitucionalista e manda bombardear o Rio de Janeiro. O Rio, acostumado com os bombardeios do tráfico e da polícia, nem percebe. Em nome da moralidade pública, estudantes e procuradores proclamam a Revolução Francesa. Ao fundo, vê-se a sombra de Napoleão Bonaparte. Donald Trump aproveita o fuzuê e compra a Amazônia.

II – BRASIL 2017 (utopia)

O Brasil caminha para o caos. A vaca só não vai para o brejo porque não há mais brejo. Eis que chega o carnaval, e Oxalá, Vishnu e Jesus Cristo desfilam num carro alegórico, na Marquês de Sapucaí. Tudo indica que seremos felizes para sempre. Pelo menos, até a quarta-feira.

CHTULU É REI!, por Luiz Henriques Neto, dramaturgo

A verdade é que 2016 foi um ano tão complicado que muita gente jurava que pondo-o para tocar ao contrário na vitrola dava para ouvir ?Chthulu é rei? (Chtulu é sinônimo nerd para Satanás, via H.P Lovecraft). Mas felizmente 2017 ?foi? um ano que passou tão rápido que ninguém nem percebeu. Apocalipses atômicos ainda na primeira quinzena por motivos idiotas costumam ter este efeito.

Olhando retrospectivamente, Donald Trump talvez não devesse ter dado em cima da namorada do Putin na cerimônia de posse… Mas, no fim, tudo correu de acordo com o que seus eleitores (e simpatizantes no mundo todo) gostariam, dado o quadro geral.

Afinal de contas, a alguns anos-luz de distância daqui, num mundo em que as pessoas ainda acreditavam em teoria da evolução, fósseis e outras invenções do demônio, as nossas explosões atômicas no céu guiaram três sacerdotes feiticeiros até uma estrebaria.

PANGEIA: A VOLTA, por Dirlei Carvalho, fisioterapeuta

Se 2016 fosse uma mão de biriba, seria daquelas em que nada combina com nada, nem trinca, nem par, você recebe as cartas e quer devolver e pedir pra embaralhar de novo, mas não dá. O símbolo maior do ponto a que chegamos é ter gente cobrando cachê para administrar grupo de zapzap.

Nós, homo sapiens, nos desenvolvemos, criamos sistemas sociais e inventamos a globalização, que virou uma girar em círculos: somos zumbis sonâmbulos, rodopiando. Em meio a essas reflexões é que me veio a solução para redimir a globalização, que seria rejuntar os continentes conforme eram antes do afastamento, ou seja, reconstruir a Pangeia.

Aí a gente não precisa de voos, embarcações, daria para fazer tudo a pé, ou de trem. Seria uma globalização real, concreta.A Odebrecht podia cuidar da logística, usando o excedente de guindastes e cola de cimento.

GRUPOS DE EXCELÊNCIA, por Fernando Ceylão, humorista

Na tentativa de conter engarrafamentos de cinco cinco dias, escassez de água e comida e um eterno clima de aniversário do supermercado Guanabara nas ruas, a ONU decidiu diminuir a população. Drasticamente. Depois de uma engarrafada reunião, sentenciaram: cada país escolheria um ?grupo da excelência?. O número de participantes teria relação com a densidade populacional. No Brasil, cem mil pessoas. Cada uma teria o direito de escolher mais três. Os não escolhidos seriam exterminados. E a vida seria, então, calma, pacata, farta e espaçosa. Mas… e os critérios? Pensaram.

Tirando o Luciano Huck, ninguém tinha certeza se constaria da lista dos excelentes. Logo começaram as polêmicas. Haveria cotistas? E a idade? E o fator salarial? E os talentos? Nepotismo? Mal o debate começou e já saiu uma lista. Logo verificou-se que era só de pessoas denunciadas por corrupção, na desesperada tentativa de se salvar. Foram todos presos. Na linha evolutiva do preso-classe-média-pra-cima, o sujeito raspa a cabeça, coloca o uniforme e faz delações. E mais gente acabou presa. Delação é tipo pirâmide da Herbalife, cada preso leva mais três. E esses três mais três…

O governo entendeu rapidamente que era preciso construir mais presídios. Enfim… Lembro de ter lido no Le Monde a matéria mais completa sobre os rumos do ?grupo da excelência? no Brasil. Aconteceu uma inversão proporcional e, de repente, o número de pessoas encarceradas era muito maior que o de pessoas livres. Não foi preciso exterminar ninguém e o problema prisional foi resolvido. Sobraram, sei lá, umas 80 mil pessoas que hoje vão do Humaitá à Barra em coisa de 20 minutos.

A 386ª FASE, por Arnaldo Branco, cartunista e roteirista

2017, era pós-atômica. Donald Trump queimou a largada e conseguiu começar a Terceira Guerra Mundial no primeiro dia do mandato, antes mesmo de aprovar a emenda constitucional com que pretendia inaugurar sua titularidade, obrigando todos os norte-americanos a seguir o seu twitter. Só sobraram as criaturas e objetos de estrutura muito resistente, como as baratas, as tampas de alumínio nas embalagens de mate e o núcleo duro do PMDB.

Agora o mundo é um deserto onde pessoas deformadas pela radiação ? ou consertadas por ela, como o membro da lista da Odebrecht e novo galã terrestre Inaldo Leitão, ex-Todo Feio ? perambulam atrás de itens básicos de sobrevivência, como fones de ouvido, lubrificante e Trakinas de morango.

O Brasil ainda existe, apesar das seguidas explosões terem bagunçado um pouco os marcos fronteiriços. Exploradores definem as novas linhas divisórias na região do Prata toda vez que surgem locais dizendo em castelhano que Maradona é maior do que Pelé, ocasião em que têm ordens de atirar para matar.

Com o que sobrou do nosso Judiciário (os corpos fundidos pela radiação de Sérgio Moro e Gilmar Mendes), a Lava Jato acaba de entrar na sua 386ª fase.

EMPATIA NA CARNE, por Maria Rezende, poeta

Imagino um mundo em que o ditado popular ?que deus te dê em dobro? seja realidade. Que cada ação de cada pessoa ecoe na sua própria vida de forma imediata e concreta. Uma mão estendida se transformando em dois braços pra dividir os pesos e levantar das quedas. Milhões desviados fazendo sumir da sua mesa a próxima refeição. Atitudes homofóbicas, machistas, racistas, voltando como um soco no espelho: sangue & sete anos de azar. Empatia na carne. Talvez só isso pudesse nos curar.

O MUNDO DO CROWDSOURCING, por Rafael Dragaud, roteirista

Estamos em pleno Apocalipse Zumbi da representatividade. Não há político, partido ou sindicato capaz de representar interesses de grupo, classe ou povo. Nem ser humano capaz de falar para além de si. Lá em casa, quando eu tento, tomo logo uma bordoada da minha mulher ou do meu filho de 3 anos. E eles estão certos!

O mundo feminino e o infantil têm que romper de vez a inércia de privilégios macho-cêntricos. Heteros grisalhos acima do peso, go home! Tchau, queridos! Tchau, eu! A solução é entregar tudo às mulheres! Elas são mais sofisticadas, têm a coragem da escuta, o senso de prioridades, o afeto.

Mas como garantir que mulheres não virem homens-em-corpo-de-mulher? Dizem que isso já aconteceu. Pronto, sobrou para as crianças. Não podem mais ser adiadas em toda sua potência. Façamos presente o futuro! Mas peraí, o Cabral já foi apenas filho… Só nos resta recorrer ao CROWDSOURCING, a inteligência das multidões, essa coisa DE TODOS que cria e produz com rapidez os MEMES e GIFS que nos mantém vivos.

O humor da internet nos salvará! Nosso novo líder será fruto dos algoritmos e impresso em 3D. Antevejo algo com a espontaneidade de um Whindersson Nunes, o papo reto da Gretchen, a ousadia do Papa Francisco, e principalmente, a imprevisibilidade do Negão da Piroca.

ADMIRÁVEL MUNDO VELHO, por Jamari França, crítico musical

José da Silva estranhou o dia cinza chumbo ao acordar. Eram oito da manhã, mas parecia noite ainda. Ligou a TV para ver o telejornal. Na tela nada de cores, tudo cinza chumbo, um locutor de terno (adivinhem) anunciava: ?Em instantes, um pronunciamento do Grande Irmão.? Bateram na porta, um cara soturno lhe estendeu um embrulho: ?suas pílulas?, deu meia volta e se foi. Começou a abrir o pacote quando na tela apareceu o grande líder. ?Bem-vindos ao Admirável Brasil Novo.? José despencou no sofá perplexo. Não pode ser verdade, isso é o pior de todos os pesadelos. Não, não. Fechou os olhos, esfregou-os incrédulo. Não é possível: Renan Calheiros!!!!

PALHAÇOCRACIA, por Ricardo Chreem, artista visual

Uma boa solução para 2017 seria baixar um decreto que obrigue os políticos a trocar o paletó pelo figurino de palhaço. Hoje, quem se sente palhaço somos nós, o que é injusto para quem exerce a profissão. Os que defendem a arte da palhaçaria se sentem ultrajados. Ao assumir essa figura, os políticos entenderiam de uma vez que o palhaço é aquele que assume o papel do bobo, do falível, do finito, do vulnerável, do que erra, para mostrar como somos todos ridículos e idiotas. Isso seria mais nobre do que a pose com cara de paisagem dos espertalhões que passam a perna na gente e só na hora em que são pegos é que se fazem de bobos. Uma vez em vigor o decreto, nós aplaudiríamos de pé o grande circo, vendo o palhaço em cena e nos identificando, democraticamente, com os idiotas que nos fazem de idiotas.

IMPÉRIO DOS BEBEDOUROS, por Beto Brown, músico e diretor

Acordei leve no primeiro dia de janeiro de 2017. Aniversário da minha irmã. Parecia docudrama futurista positivo. Bebedouros de água limpa de três em três quarteirões pela cidade toda, inclusive as zonas Norte e Oeste, Centro e Baixada. Na Avenida Brasil havia cartazes da campanha de conscientização pós-descriminalização das drogas e do aborto. Os traficantes haviam feito um curso de produção orgânica não só de cannabis mas de tudo quanto é hortaliça comestível e planta medicinal. Havia hortas urbanas em todo canto para cassar o mito da falta de comida. Sempre querem nos enganar! Passagens a R$ 1,80 pululavam em todos os trechos da cidade. Restaurantes populares com comida orgânica jorravam como cascatas das esquinas.

LÂMPADAS FLUTUANTES, por Clarice Niskier, atriz

Para embarcarmos em 2017 com esse mau tempo, proponho a construção de um pequeno e eficiente barco a remo, como o de Amyr Klink, que remou da Namíbia (África) até o Brasil sem perder o rumo, o prumo, o remo, a rima, a poesia. Vamos seguir sua tática: ?Remar de costas, olhando para trás, pensando para frente.? Porque se olharmos a distância que falta agora para o continente, podemos desesperar. Seguir olhando para a História, para o tanto que já avançamos, apesar dos pesares, o futuro na cabeça. Sejamos milhões de ?lâmpadas flutuantes?, como joão-teimosos, nas ondas violentas, em direção à terra firme, em meio à tempestade que parece interminável. Sigamos remando a nós mesmos. Nação encharcada de raiva, tristeza, angústia, agonia. Tanques de água doce hão de equilibrar o barco na travessia. Vislumbro a chegada, a ética nas relações, eleições diretas, nosso continente.

LAVA-TUDO, por Gerald Thomas, dramaturgo

Trump não foi a pior coisa que aconteceu em 2016. Foi a pior coisa que aconteceu desde 1933 com a ascensão do Reich. Em 2017 constataremos que todos os passos que demos para frente foram retrocedidos com folga. Bush foi um progressista. A grande distopia já está aí, ao vivo e em cores. Por outro lado, o Brasil de repente se transforma num oceano de transparência. É o ano em que se abrirão todas as lavanderias. O lava-tudo é a verdadeira utopia!