Cotidiano

Nos 20 anos da morte do escritor João Antônio, material inédito será lançado em livro

INFOCHPDPICT000033513433SÃO PAULO ? No dia 31 de outubro de 1996, há exatos 20 anos, numa cena tão crua que parecia saída de um de seus contos, o escritor paulista João Antônio foi encontrado morto por um zelador, que arrombou a porta do seu apartamento depois que vizinhos notaram uma estranha nuvem de urubus pairando sobre o edifício de Copacabana. João já tinha sofrido um infarto havia cerca de três semanas, e cada detalhe do cenário funesto indicava que ele estava preparando uma viagem rápida antes da definitiva: sapatos casados no chão do quarto, camisas dobradas sobre a cama, uma maleta aberta.

Sua obra vai continuar viva porque atenta para o lado torto, irresolvido da sociedade brasileira.Aos 59 anos, o premiado autor de ?Abraçado ao meu rancor?, ?Malagueta, perus e bacanaço? e ?Leão de chácara? morreu apoucado, quase esquecido. Elogiado nos anos 1960 e 70 por críticos como Antonio Candido, Paulo Rónai e Alfredo Bosi, que o tinham como um herdeiro direto de Lima Barreto, ao assumir personagens marginais como protagonistas ? e tome malandros, prostitutas, traficantes, bêbados ?, João Antônio passava por um momento apagado nos anos 1990. A obra do jornalista e escritor só recuperou o prestígio quase dez anos depois de sua morte, quando a família doou parte do acervo à Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), aumentando o interesse acadêmico sobre seus escritos; e parte à editora Cosac Naify, que relançou seus títulos em edições de luxo.

Com o fim da Cosac, em dezembro, o legado de João perigou mais uma vez. Até o editor Milton Ohata abraçar o arquivo e levá-lo à Editora 34. Literalmente: o material está em duas caixas de polietileno azul, que, encimadas, cabem num abraço. Ao vasculhar os papéis, Ohata encontrou muito material ainda inédito em livro, como longas reportagens literárias, deliciosas crônicas musicais e textos sobre o cotidiano carioca. A boa notícia para os fãs de João Antônio ? certamente há um séquito deles ainda jogando sinuca em bares do Rio, São Paulo, Osasco ou Berlim, cidades onde o autor viveu ? é que todos esses textos serão lançados pela 34 a partir do ano que vem. E também uma nova edição dos seus ?Contos reunidos? e versões mais acessíveis dos contos separadamente.

Joao antonio1. Foto Pedro Kiril.jpg? Publicaremos também um título nunca mais relançado, ?Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto? ? antecipa Ohata. ? É um livro singular dentro da obra dele, que se move no terreno de certo realismo cru: o próprio autor internou-se entre maio e junho de 1970 no Sanatório da Muda, após uma crise emocional. Lá conheceu o interno Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, então com 72 anos. Ele tinha sido jornalista no ?Diário de Notícias? e em ?O Jornal?, e conheceu Lima Barreto. Relata a João Antônio esses encontros. A figura de Lima Barreto surge no livro por pessoa interposta, com um filtro que relativiza o critério da objetividade. Há muito material de arquivo a ser pesquisado, o que certamente vai enriquecer o conhecimento atual sobre ele. Vamos incorporar esse material.

CURIOSIDADES NAS CAIXAS

Guardado agora na sede da Editora 34, essa parte do acervo revela muito do minucioso processo criativo do escritor. Há muitos rascunhos para um mesmo texto, indicando que João reescrevia à exaustão. Há uma coleção de fotos de tipos urbanos feitas pelo repórter fotográfico Ubirajara Dettmar, usadas como referência para personagens.

Há retornos de editores grampeados aos manuscritos de alguns contos, com detalhes das mudanças acatadas ou não (num deles, de 1993, o editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, Manoel Lobato, sugere: ?A personagem da velha merece um retoque. Meta umas especulações filosóficas na cuca da velha, uma frase qualquer, solta, como se fosse da consciência dela, a fim de que o leitor fique intrigado: ela é culta? é religiosa? Coisas assim. O final é grandioso: grandioso e belo, dando o pão, e não a mão?). E ainda todo tipo de anotação com expressões ouvidas nas ruas, bilhetes de avião, maços de cigarro. O método, que parecia caótico no início, resultava bastante funcional: o autor depois separava os papeizinhos nos envelopes dos respectivos contos ou reportagens que poderia enriquecer (num deles, que findaria no conto ?Iemanjá?, há uma lista com mais de 30 nomes curiosos de bares de Salvador, como ?Lanches Oxum?, ?Bar Barriga de Aluguel?, ?Bar Unidos Venceremos? etc). Preciosismo que faz os textos serem ainda muito atuais, avalia Ohata:

62363524_SC 05-10-2016 - Acervo de anotacoes e cartas do escritor Joao Antonio. Foto Pedro Kirilos -.jpg? João Antônio teve uma estreia fulgurante, em 1963, ganhando dois prêmios Jabuti com ?Malagueta, perus e bacanaço?, quando alguns dos gigantes da literatura brasileira estavam em plena forma, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Drummond, Murilo Mendes etc. Valor literário à parte, sua obra vai continuar viva porque atenta para o lado torto, irresolvido da sociedade brasileira. Seus personagens continuam circulando por aí e nada indica que desapareçam tão cedo. A fidelidade com que ele tratou seus personagens escapa também dos vieses ideológicos de esquerda, o que é um elemento crítico no momento em que a parte socialmente mais organizada dela deveria fazer um balanço substantivo das opções que tomou nos últimos anos.

Outras novidades vão homenagear o escritor nos 20 anos de sua morte: a Casa Porto, no Largo São Francisco da Prainha, no Rio, está produzindo um encontro de amigos e leitores do autor para breve, onde vão ouvir suas músicas preferidas e comer cuscuz paulista, um de seus pratos favoritos que sempre pedia para amigos prepararem no tempo em que viveu no Rio; em São Paulo, o saxofonista Thiago França, do grupo Metá Metá, planeja novas apresentações do ?Malagueta, Perus e Bacanaço?, disco lançado em 2013, todo inspirado no clássico do autor, até o fim do ano, na Casa da Francisca; e a Unesp vai publicar em 2017 os textos das palestras que ocorreram no último dia 5 durante o ?Encontro João Antônio?, que reuniu pesquisadores da UFSCar, UEL e Unesp especializados na obra do autor.