Cotidiano

Netos levam médico a reviver os marcantes dias da Segunda Guerra

RIO – O médico Carlos Henrique Bessa estava com 24 anos quando voltou da Segunda Guerra Mundial. Nas décadas seguintes, investiria pesado na carreira médica, abriria uma empresa, faria negócios bem sucedidos na Europa e casaria aos 35 anos. As histórias do ex-pracinha ficaria em segundo plano. Em 2014, instigado pelos dois netos, Bessa procurou a Casa da Força Expedicionária Brasileira (FEB), no Centro do Rio, em busca de dados e, assim, sua história começou a se tornar pública.

— Comecei a escrever um diário, mas parei quando fui para o front. Não tinha tempo. Hoje em dia me faz falta recordar coisas que eu vi e feridos que eu atendi. Mas naquele tempo eu queria atender e esquecer — conta ele, segundo-tenente médico durante a guerra.

O relato de Bessa, de 96 anos, enriquecem agora o acervo da Casa da FEB, que quase fechou no fim do ano passado, após crise financeira. O historiador e vice-presidente da instituição, Israel Blajberg, surpreendeu-se com a narrativa.

— Quase ninguém sabia da história dele (Dr. Bessa). É muito interessante ouvi-lo porque traz à tona o atendimento dos feridos na frente de batalha — diz Blajberg.

Carlos Bessa nega a pretensão de ser considerado um herói.

— Tenho muito orgulho de ser patrício daqueles que estão no Monumento (aos Mortos da Segunda Guerra, no Aterro do Flamengo). Muitos morreram porque tiveram coragem de fazer coisas que não sei se eu teria. Muitos se sacrificaram para salvar outros. Se arriscaram para buscar outros que estavam feridos.

O médico, porém, atuava bem perto do front.

— O padioleiro lá na frente fazia os primeiros socorros. Estancava a hemorragia, dava morfina para passar a dor e jogava para a triagem, para mim. O meu grupo ficava um pouco atrás, entre 500 metros e 5 quilômetros. Do meu posto, passava a um posto mais à retaguarda, também do batalhão de saúde, a companhia de tratamento — explica Bessa, que inicialmente ficou em Vecchiano e Porretta Terme.

AMIGOS DOS ALEMÃES

Um dos episódios mais curiosos ocorreu já no fim da guerra. Sem estrutura, o exército alemão pediu a FEB ajuda no atendimento de feridos.

— Antes de se render, os alemães entregaram 800 feridos. Não tinham mais condições de atendê-los. Quando cheguei encontrei o meu posto cheio de macas com soldados alemães uniformizados. Fiquei 36 horas lá sem poder dormir, atendendo os pacientes. E os alemães balbuciavam ‘piedade’, ‘por favor'. Pegavam os capacetes e davam pra gente. Tenho capacete e medalhas alemãs por causa disso.

O médico não pensava na morte.

— Minha preocupação era sofrer mutilações e ser prisioneiro. A ideia da morte não era um fantasma — afirma ele, que apenas sofreu um leve ferimento no queixo durante a guerra.

A chegada das tropas brasileiras à Itália, recorda Bessa, gerou desconfiança.

— Éramos uma força de amadores. Recolhidos de uma maneira um pouco improvisada. Os primeiros reveses, principalmente Monte Castelo, deixaram a primeira impressão não muito favorável. Temia-se que os brasileiros não fossem capazes — diz.

Com a experiência nos campos de batalha, os resultados vieram.

— Após a tomada de Montese, o general americano Willys Dale Crittemberg (comandante do 4º Corpo de Exército, a quem a FEB estava subordinada) fez um elogio dizendo que os brasileiros deram um exemplo de como se conquista uma cidade.

Na memória do médico, a entrada triunfal nas cidades italianas.

— Em cada cidade que a gente passava como libertador, o povo todo se jogava em cima das viaturas militares, querendo beijar, dando tudo o que podia pra nós: ovos, vinhos. Tocavam a gente como fôssemos semideuses. Tive de subir para fazer um discurso.

O fim da guerra rendeu uma grande festa.

— Estava em Tortona, alojado em uma casa, quando ouvi gritos na rua: ‘A guerra acabou’. Fui para a janela ver. Já tinha grupos de italianos cantando. Eu também sai para festejar.

VOLTA AO FRONT

A nostalgia fez Bessa voltar em 2014 à Itália. Decidiu visitar a casa de uma família italiana que o abrigou durante o inverno de 1944. Lembrou-se especialmente de Ornella, uma menina, à época de 12 anos, com quem fez grande amizade. Surpreendentemente, ele a reencontrou.

— O marido dela estava no jardim. E fiz algumas perguntas. Ele então a chamou. Ela apareceu na janela, uma velhinha de 70 e poucos anos.

Bessa, porém, apesar de muito bem recebido, não teve coragem de dizer que era o médico brasileiro, hospedado durante a guerra. Disse que era apenas o irmão. Bessa se despediu e foi para Florença.

— Fiquei tão arrependido de não ter dito a verdade que voltei no dia seguinte: ‘Você vai me desculpar, mas Carlos Bessa sou eu mesmo’. Ah, foi uma festa. Chamou marido, chamou vizinho ali em volta — conta o médico, comovido.

Para Bessa, o Brasil deixou uma grande mensagem na Itália.

— As forças brasileiras foram provavelmente o único exército que, passando pela Itália, deixou um traço de simpatia muito marcante. A prova disso é que existem mais de 20 monumentos feitos espontaneamente pelos italianos em homenagem às forças brasileiras. A 10ª Divisão de Montanha teve o dobro de mortos e não ganhou monumento para os americanos. Nem para os ingleses.